Felipe Fernandes — “Guerra civil” nos EUA e o jornalismo

 

 

Felipe Fernandes, cineasta publicitário e crítico de cinema

A natureza do jornalismo de guerra

Por Felipe Fernandes

 

A informação e a desinformação sempre foram importantes ferramentas em qualquer tipo de conflito. Quando se trata de uma grande guerra, tudo se torna ainda mais perigoso, com os tempos modernos e a “democratização” dos meios de registro e de divulgação, a informação se tornou ainda mais valiosa, ainda que mais suscetível a manipulação. Não por acaso, o diretor e roteirista Alex Garland abre seu novo filme com o presidente se preparando para um importante discurso, onde claramente não está seguro de seu conteúdo.

Em um momento histórico onde o extremismo político parece ser uma tendência global, Garland constrói um road movie para mostrar o trabalho de jornalistas de guerra. Ele poderia escolher qualquer conflito armado, do passado ou presente para situar sua trama, mas ele decide narrar sua história em uma hipotética guerra civil dentro dos Estados Unidos. Um elemento interessante é pensar um conflito armado dentro do território estadunidense. Essa escolha pode soar como uma crítica/provocação, que não parece tão absurda no fim das contas.

Garland não busca explicar as origens daquele conflito. O filme apresenta algumas informações de forma orgânica em alguns diálogos ou material de pano de fundo. Não se aprofunda nas causas, mas, sim, nas consequências. Essa é uma decisão acertada, permitindo ao filme não abraçar nenhum tipo de ideologia política, já que não é preciso muito para dentro do contexto atual, compreendermos como as coisas podem sair do controle.

A protagonista Lee (Kirsten Dunst), é uma fotógrafa renomada, experiente, mas que sente o peso dos anos realizando esse tipo de cobertura. Ela pretende junto a seu parceiro Joel (Wagner Moura), atravessar o país até a capital para entrevistar o presidente. Na preparação da viagem, acabam se juntando a eles o experiente Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata Jessie (Cailee Spaeny), que embarca para aprender sobre o ofício. Todos cientes de que se trata de uma jornada extremamente perigosa.

A inserção de Jessie no grupo funciona em termos de roteiro, pois ela se torna a referência do espectador. Cria-se uma dinâmica de mentora e pupila e vamos aprendendo sobre o ofício através de diálogos que se tornam orgânicos, já que é a personagem quem está aprendendo. Acompanhamos suas motivações, sentimentos e como o desejo pelo registro vai tomando o lugar do medo.

A viagem do grupo acontece em meio a estradas vazias, repletas de carros abandonados, construindo uma sensação de mundo pós-apocalíptico. Todos que encontram pelo caminho estão envolvidos militarmente na guerra, sejam moradores que criaram suas próprias regras e defesas, ou grupos militares. O grupo parece atraído sempre que encontra um tiroteio, acabam se envolvendo buscando apuração e registro e uma busca consciente pela emoção daquele tipo de momento.

O filme é eficiente em construir uma sensação de perigo, como se a qualquer momento algo pudesse acontecer aos personagens. As cenas de ação são bem construídas, fugindo de qualquer estilização. São cenas cruas, que ganham muito devido ao excelente som do filme, que realmente nos transporta para a zona de guerra, potencializando a sensação de perigo.

Chama atenção como em algumas cenas acompanhamos as fotógrafas em meio aos soldados, se movendo e empunhando suas câmeras como se fossem armas. Essas cenas reforçam a ideia da informação como arma de guerra, ainda que ela não seja tão eficaz no momento da ação, são essas fotos que podem causar um impacto maior no quadro geral.

“Guerra civil” é um excelente road movie que consegue nos fazer compreender um pouco da natureza por trás dos jornalistas de guerra e funciona como uma previsão pessimista sobre o futuro do mundo com a expansão da polarização política e do radicalismo. É um blockbuster que não mete o dedo na ferida, mas provoca reflexão. O que já é um diferencial se comparado a tudo que Hollywood vem produzindo nos últimos anos.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Confira abaixo o trailer:

 

Missa de 30 dias de Pepenha às 19h desta 2ª, no Sagrado Coração de Jesus

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

Às 19h desta segunda (29), será celebrada a missa de 30 dias de falecimento de Maria da Penha dos Santos Abreu, na Igreja da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, na rua Riachuelo, nº 280. Minha querida avó materna (confira aqui), ela faleceu aos 102 anos, no último dia 29 de março.

A missa será celebrada pelo padre Hélio. Os filhos, netos, bisnetos e trinetos de Pepenha — comerciante, produtora rural e uma católica apostólica romana fervorosa em vida — convidam a todos para orar juntos em intenção da sua alma.

 

Plano Safra de 2024 à agricultutra será lançado em Campos

 

Gilberto Gomes e Victor Tinoco anunciaram ontem lançamento do Plano Safra em Campos (Foto: Reprodução)

 

Em vídeo divulgado ontem (26) nas redes sociais pelo secretário de Comunicação do PT de Campos e assessor do deputado federal Lindbergh Farias (PT/RJ), Gilberto Gomes, o coordenador do ministério do Desenvolvimento Agrário no Estado do Rio de Janeiro, Victor Tinoco, anunciou que o Governo Federal pretende realizar ainda este ano um grande evento de lançamento do Plano Safra em Campos. Que poderá reunir outras entidades como Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Brasil (BB), Emater e universidades.

No vídeo, Victor Tinoco destacou que considera simbólica a possibilidade de realizar este evento em Campos. Que ele considerou “um território estratégico, com 12 assentamentos de reforma agrária e mais de 4 mil agricultores familiares”.

Também pré-candidato a vereador pelo PT goitacá, Gilberto lembrou que, segundo dados do ministério da Cidadania, Campos ainda conta com mais de 100 mil habitantes abaixo da linha da pobreza. O que reforçaria a necessidade, além das políticas de financiamento, do fortalecimento das políticas que “coloquem comida de qualidade na mesa do trabalhador”.

Tinoco reiterou que o presidente Lula (PT) tem pedido atenção para retirar o Brasil do Mapa da Fome, com a produção de alimentos saudáveis e um sistema alimentar sustentável. Em 2023, com o Plano Safra, o ministéio da Agricultura disponibilizou R$ 364,2 bilhões em crédito rural. O Plano Safra é um programa do Governo Federal para apoiar o setor agropecuário, oferecendo linhas de crédito, incentivos e políticas agrícolas aos produtores rurais.

Um dos primeiros atos do presidente Lula após a posse, segundo Gilberto, foi “turbinar” o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) com R$ 1,5 bilhão a mais para a merenda escolar, 30% oriundos da agricultura familiar. Para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) já está iniciando a compra de R$ 250 milhões da agricultura familiar, com meta de atingir até R$ 1 bilhão.

 

Confira abaixo o vídeo:

 

IFF abre à comunidade estudo e debate da literatura do séc. 19

 

IFF Campos (Foto: Folha da Manhã)

 

Estão abertas, até 9 de maio, as inscrições aos projetos “Grupo de Estudos em Teoria Literária” e “Páginas Brasileiras Oitocentistas: nas entrelinhas dos romances nacionais”. São projetos de extensão, abertos à comunidade, com encontros online regulares e discussões de textos teóricos e de obras literárias. As reuniões ocorrerão via Google Meet e haverá formação de grupos no Whatsapp exclusivamente para informes de interesse acadêmico.

As reuniões do Grupo de Estudos em Teoria Literária ocorrerão semanalmente, às segundas-feiras, às 15h da tarde. O projeto visa discutir textos de relevância à teoria literária de diversas épocas, incluindo autores das mais diversas nacionalidades. Serão ofertadas 20 vagas.

As reuniões do projeto “Páginas Brasileiras oitocentistas: nas entrelinhas dos romances nacionais” ocorrerão mensalmente, aos sábados. O primeiro encontro será no dia 11 de maio, às 10h da manhã. O projeto é um clube de leitura, no qual se discutirá obras literárias brasileiras do século XIX previamente lidas pelos participantes. Serão ofertadas 20 vagas.

Os interessados no Grupo de Estudos em Teoria Literária devem enviar e-mail ao endereço teorialiterariaiff@gmail.com. Já os que pretendem participar das Páginas Brasileiras Oitocentistas: nas entrelinhas dos romances nacionais, devem enviar a: historiadaliteraturaiff@gmail.com. Os e-mails devem conter nome completo, contato telefônico, formação acadêmica e link do currículo Lattes, caso tenha.

 

Presidente da Câmara de Campos no Folha no Ar desta 6ª

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Presidente da Câmara Municipal de Campos, o vereador Marquinho Bacellar (União) é o convidado para fechar a semana do Folha no Ar nesta sexta (26), ao vivo, a partir das 7h da manhã, na Folha FM 98,3. Ele analisará a força do seu grupo político (confira aqui) a partir da chegada do irmão, deputado Rodrigo Bacellar (União), à presidência da Alerj, seu futuro no RJ de 2026 e as ressalvas que o ex-governador Anthony Garotinho (REP) fez a essa liderança (confira aqui) em entrevista ao Folha no Ar de 6 de abril.

Marquinho também falará dos enfrentamentos da CPI da Educação (confira aqui), da LOA 2024 (confira aqui) e do nível dos debates (confira aqui) na Câmara Municipal, como poderá responder a críticas do (confira aqui) prefeito Wladimir Garotinho (PP) no Folha no Ar de 22 de março. Por fim, ele analisará as nominatas e os prefeitáveis do seu grupo para a urna de Campos em 6 de outubro, daqui a exatos 5 meses e 11 dias.

Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta sexta poderá fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, nos domínios da Folha FM 98,3 no Facebook, no Instagram e no YouTube.

 

Ex-presidente da Câmara de Campos no Folha no Ar desta 5ª

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Servidor federal, ex-presidente da Câmara Municipal de Campos, ex-deputado federal e pré-candidato a vereador, Marcão Gomes (MDB) é o convidado do Folha no Ar desta quinta (25), ao vivo, a partir das 7h da manhã, na Folha FM 98,3. Ele dará sua versão das críticas que sofreu do ex-vereador e pré-candidato a prefeito Jorge Magal (SD), em entrevista no Folha no Ar (confira aqui) da última sexta (19). E falará da sua passagem de aliado do ex-prefeito Rafael Diniz (Cidadania) a aliado do prefeito Wladimir Garotinho (PP).

Marcão também analisará a montagem da nominata, que integra, do MDB que abriga o vice-prefeito Frederico Paes e, hoje, o ex-deputado federal Caio Vianna. Por fim, ele tentará projetar as eleições a prefeito (confira aqui e aqui) e vereador de Campos em 6 de outubro, daqui a 5 meses e 12 dias.

Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta quinta poderá fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, nos domínios da Folha FM 98,3 no Facebook, no Instagram e no YouTube.

 

Arthur Soffiati e o cinema que inspirou a geração de Scorsese

 

 

Arthur Soffiati, historiador, escritor e crítico de cinema

Formigas no esgoto

Por Arthur Soffiati

 

Na década de 1960, os estúdios de Hollywood entraram em crise. Havia muita briga. Chefes de estúdios encomendavam roteiros originais ou adaptados a autores que não se davam com os diretores escolhidos. Havia também briga entre artistas que trabalhavam juntos. Um dirigente chegou a dizer que a atriz escolhida devia lhe provocar desejos sexuais. Foi então que entrou em cena um grupo de cineastas dispostos a renovar o cinema dos Estados Unidos. Eram chamados de “movie brats”. Quentin Tarantino escreve: “O que diferencia os ‘movie brats’ da geração de diretores que veio logo antes deles, mais do que a juventude e a formação em faculdades de cinema, é o fato de que eles eram (em sua ‘maioria’) fanáticos por cinema.”

Seus nomes são por demais conhecidos atualmente: Spielberg, Scorsese, Lucas, De Palma, Hal Ashby, Terrence Malick e Ralph Bakshi. Eles curtiam filmes que os cineastas politizados da geração precedente consideravam horríveis pelo prisma estético e político. Os “movie brats” gostavam de televisão, de “Viagem ao centro da Terra”, de “20.000 léguas submarinas”, de “A máquina do tempo”, de “A cidadela dos Robinsons”, de “Os canhões de Navarone” e consideravam Roger Corman um verdadeiro ídolo com seus filmes B.

Os “movie brats” não eram de produzir filmes “cabeça”. Eles sabiam muito bem que o cinema é uma arte voltada para o grande público. Isso não significa que eles produzissem filmes de qualidade inferior. Com bastante sensibilidade, eles combinavam a qualidade ao gosto popular. Eles foram a primeira geração de cineastas de ponta em Hollywood a assistir ao clássico de ficção de Gordon Douglas, “O mundo em perigo” (“Them”), de 1954. É difícil falar em primeira vez no cinema em se tratando dos Estados Unidos, mas este talvez seja o primeiro filme a declarar que a humanidade entrou em nova era (muito perigosa) com a detonação de duas bombas atômicas no Japão, em 1945.

Admiro este filme, contextualizando-o devidamente. Antes de lançar as bombas, houve experiências no estado norte-americano do Novo México. Essas experiências causaram, no filme, efeitos que poderiam acabar com a humanidade, não fossem a inteligência a ação de um velho cientista. Uma menina é encontrada vagando pelo deserto em estado de choque. Um trailer foi destruído e o dono de um boteco foi morto. A polícia descarta roubo e não encontra explicação para crimes em que uma força descomunal foi usada.

Além da polícia estadual, o FBI entra em cena e também não atina com a motivação do crime. Como o objetivo dos ataques parece ter sido a obtenção de açúcar, decide-se consultar o mais conceituado entomologista do país. Idoso, ele é especialista em formigas. Sua filha, (interpretada por Joan Weldon) é uma daquelas moças lindinhas do cinema norte-americano na década de 1950: alta, belo rosto, penteado da época, sorriso claro, vestido comprido com pregas, bem cintado para mostrar cintura, quadris e seios (tudo com recato). Ela também é iniciada nos mistérios das formigas. Aonde o pai não pode ir, ela vai.

Usando a dedução, o velho cientista não custa a concluir que a experiência nuclear efetuada em 1945, no Novo México, pouco antes do lançamento das duas bombas atômicas sobre o Japão, havia afetado as formigas. A Experiência Trinity, que oficialmente inaugura a era nuclear da humanidade, havia ocorrido apenas nove anos no tempo do filme e estava ainda muito viva na lembrança das pessoas.

Não apenas os japoneses foram vítimas da radiação nuclear. Os Estados Unidos estão ameaçados por formigas gigantes que podem exterminar os habitantes do país e a humanidade. É preciso detê-las. Dr. Medford, o velho cientista, convence policiais, forças armadas e governo federal a combater as formigas mutantes. Vitória da velhice e da ciência. Ele profere frases lapidares, como: “As formigas são as únicas criaturas, fora o Homem, que fazem guerra. Elas fazem campanha, são agressivas e escravizam as prisioneiras que não são mortas” Ou: “Podemos estar testemunhando uma profecia bíblica se realizando: a destruição e a escuridão descerão sobre o mundo e as feras reinarão sobre a Terra”.

Todos se curvam diante de sua sabedoria, iniciando-se uma guerra implacável contra as formigas gigantes. O comando geral está com o Dr. Medford. A batalha final é travada numa galeria de esgoto, onde o cientista faz uma proclamação frontal à era nuclear. Num mundo em que a energia nuclear foi liberada, tudo pode acontecer.

A fotografia em preto-e-branco é muito boa. Os enquadramentos e os planos-sequência estão nas mãos de um bom diretor. Gordon Douglas tinha um grande currículo. O filme se vale de efeitos especiais. Ele concorreu ao Oscar nesse quesito, mas perdeu para “20.000 léguas submarinas”. De fato, as formigas não são muito convincentes.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Conto premiado de Adriano Moura com broa de milho e café

 

 

 

Adriano Moura, escritor, professor de Letras do IFF e primeiro vice-presidente da Academia Campista de Letras (ACL)

Cheiro de passado

Por Adriano Moura

 

As ruas de Campos estavam desertas naquela manhã de 23 abril de 2020. No mês anterior havia sido decretado lockdown como forma de conter a propagação da Covid-19. Há dois meses tinha iniciado uma série de viagens para lançamento do meu livro, que precisei cancelar, já que não sabia quando iríamos poder voltar ao normal. Pelo menos à ideia que construíramos sobre normalidade. Da janela do apartamento via o silêncio interrompido somente por alguns carros que se movimentavam a despeito da paralisia que assombrava os que, de dentro de suas residências, moviam seus corpos o suficiente para evitar a atrofia física e mental.

Do apartamento ao lado vinha um cheiro que me era bastante familiar. Alguém acabara de retirar do forno uma broa de milho. O aroma era inconfundível. Quando criança, ajudava minha mãe no plantio e colheita de milho no quintal da pequena casa onde morávamos no interior da cidade. Cultivávamos também outros alimentos como aipim, abóbora, batata doce. Grande parte do que comíamos vinha da terra.

A broa feita pela minha mãe no fogão à lenha era o perfume que completava o sabor de nossos cafés da tarde. Pela manhã, comíamos aipim cozido, pois era mais rápido o preparo. Meu pai cortava cana. Acordava com o primeiro canto do galo. Na marmita preparada para as refeições do dia, às vezes só não levava carne. De vez em quando um ovo cozido posto por alguma das galinhas criadas no quintal.

Embora não fosse todos os dias, a broa de milho era a estrela do nosso café da tarde; ou angu doce, outra especialidade da minha mãe, que completava a renda da casa lavando roupa para as famílias ricas do lugar.

Quando eu chegava da escola, sabia desde o portão se era dia de broa ou angu. Então sentávamos eu e meus outros dois irmãos. Assistíamos ao ritual cuidadoso de retirada da broa do forno, à delicadeza firme de nossa mãe no manuseio da faca para o corte, à alegria com que entregava a cada filho seu pedaço.

Depois que meu pai faleceu, vítima de infarto, minha mãe precisou ir para o corte de cana, pois só o dinheiro da lavagem da roupa não era suficiente para manter a casa. Meu irmão mais velho parou de estudar para trabalhar. Eu e minha irmã ficamos incumbidos de cuidar da casa quando não estávamos na escola. Ao sair de madrugada para o trabalho, nossa mãe deixava uma lista de afazeres que ela conferia logo que chegava de noitinha. Quase que só lhe víamos o branco dos olhos. Duas lâmpadas acesas no corpo coberto do carvão da queimada de cana.

Deixávamos o banho dela preparado: o balde com água morna, a bucha e o sabão para que, depois de removida a tintura do trabalho, voltasse a ser a nossa mãe. Mas ela precisava adiantar a comida do dia seguinte para, ao acordar, apenas esquentar, colocar na marmita e separar o que ficaria para mim e minha irmã comermos.

Minha mãe era uma mulher muito forte. Com o tempo foi ficando magrinha. As rugas se multiplicavam com velocidade nas bordas dos seus olhos. Um dia, fiquei observando-a arrumando a marmita. Notei que punha pouca comida para quem teria de enfrentar os eitos de cana. Descobri que o dinheiro não estava sendo suficiente. Então ela comia pouco para que eu e minha irmã tivéssemos o que comer.

Os sábados e domingos eram dedicados à lavagem de roupa. Eu ajudava enchendo o tanque e puxando água do poço. Aos poucos ia percebendo o engrossar das mãos provocado pela aspereza da corda. Tudo foi ficando muito áspero à medida que eu crescia.

Minha irmã tinha a incumbência de passar a roupa na segunda-feira; eu, de fazer as entregas.

A tristeza nos olhos dela cresceu no primeiro dia em que meu irmão chegou bêbado em casa. Ele trabalhava num armazém, atendendo no balcão e entregando compras de bicicleta. Um dia, após sair do trabalho, parou no botequim e bebeu sozinho um litro de cachaça. Meu irmão nunca se conformou em ter parado de estudar. Saiu de casa depois de conseguir um emprego um pouco melhor. Virou frentista num posto de gasolina no centro da cidade. Estava livre do peso, mas somente o das compras que carregava. Era oito anos mais velho que eu. Mesmo não morando mais conosco, não deixava de nos ver e ajudar com dinheiro, além de, vez ou outra, levar a mim e minha irmã para passear.

Fechei a varanda e retornei ao sofá da sala. Aquele cheiro de broa de milho me acompanhava. Embora o presente estivesse me convocando as suas demandas, era o passado o ocupante das horas que, no tempo de confinamento, demoravam a passar. Folheava absorto as páginas de Proust. Decidira fazer da leitura de Em busca do tempo perdido uma das atividades que me ajudariam a atravessar a solidão mascarada pelos riscos da Covid. De repente me vi tentando recuperar a lembrança do cheiro macio e colorido da última broa de milho assada pela minha mãe.

Com o passar do tempo, não plantávamos mais milho. Comprávamos fubá no armazém da usina, e a farinha era destinada ao angu, que logo passou a ser uma das nossas refeições mais frequentes. Angu com carne moída, ou com salame, folha de taioba, ou…não foram poucas vezes somente o angu, ralo para que durasse mais tempo a farinha.

Assim me visitou o passado várias horas daquele dia. Eu tentava em vão retê-lo, fazê-lo ficar o máximo possível comigo. Mas me escapava arredio. Fui me dando conta da impossibilidade de prendê-lo à medida que o cheiro ia se dissipando. Resolvi telefonar para minha mãe, também isolada, principalmente devido à idade. Conversamos sobre as lembranças que me visitaram. Disse a ela que decidira escrever sobre o assunto em meu próximo livro.

“Você sempre gostou de escrever. Lembra como aprendeu?”. Ao telefone, disse-me que eu me alfabetizei sozinho, escrevendo com gravetos nos fundos do quintal da casa. Falou que às vezes estava me procurando, quando então se deparava comigo, agachado, rabiscando no chão letras que com o passar do tempo construiriam palavras. A escola só teria aprimorado em mim o ensinamento dos gravetos. A memória de minha mãe estava falhando ultimamente. Surpreendeu-me a precisão com que narrou esse episódio.

Sentei à frente do computador para escrever sobre os aromas da infância, tarefa que me fez atravessar a noite com os dedos nas teclas cujo barulho, embora suave, era música que embalaria o sono que só se consumaria ao amanhecer. Todos os dias, pela manhã ou à tarde, eu ia até a varanda na esperança de que aquele cheiro novamente me visitasse. Mas ele não veio mais. Notei que nem mesmo barulho minha vizinha fazia. Imaginei que tivesse se mudado. Soube depois que falecera, vítima de Covid.

Numa manhã de sábado, meu celular tocou. Era minha mãe. Disse para eu ir até a casa dela à tarde, pois precisava falar urgentemente comigo. Manteríamos o distanciamento social recomendado para evitar risco de contágio, mas que nossa conversa não podia ser por telefone. Não gostei do tom de voz dela.

Apertei a campainha da casa às 17h. Cristina, minha irmã, abriu o portão. Não nos abraçamos. Nem mesmo um aperto de mão. Era um tempo em que o abraço implicava risco de morte. Adentrei a sala. O cheiro de infância dominava todo o ambiente. Minha mãe fizera broa de milho. Ficamos próximos como há muito não nos sentíamos. Cristina prestava mais atenção à televisão ligada na Sessão da Tarde do que na conversa. Guardava certa mágoa de mim e Jeferson. Para ela, eu e ele seguimos nossas vidas enquanto ela teve de ficar cuidando de nossa mãe, que nunca soube das frustrações da filha. Mesmo assim foi uma tarde deliciosa de afetos fisicamente distantes. De vez em quando mamãe esquecia meu nome e perguntava quem eu era. Como eu temia o que aqueles esquecimentos significavam!

À noite, em casa, continuei a escrever um conto iniciado no dia anterior. Atravessei mais uma vez a madrugada. Dormi. Acordei, preparei o café acompanhado por um generoso pedaço de broa que eu trouxera da casa de minha mãe. Aquele gosto e cheiro foram meus companheiros durante o isolamento. Não há solidão quando se tem memórias e é possível escrever sobre elas.

Mesmo com a chegada das vacinas e o fim do isolamento, mantive o hábito do café com broa de milho em casa. Meu novo vizinho (ou vizinha?) costuma acender incensos. Sei pelo cheiro que me remete à…

…isso é outra história.

 

(Texto premiado no Concurso de Contos “Um olhar sobre o amanhã”, da secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e um dos capítulos de “A inocência dos mortos”, novo romance do autor)

 

Folha Letras da edição de hoje da Folha Dois