Lembranças de Pedro

Morreu, às 16h50 de hoje, vítima de um câncer na bexiga contra o qual lutava há cerca de um ano, o médico Pedro Otávio Enes Barreto, aos 55 anos. Era o primogênito orgulhoso de Dona Eneida e Seu Hercílio; irmão cuidadoso de Guilherme, Fátima, Frederico e Beatriz; marido apaixonado de Luiza Helena; pai carinhoso de Lívia, Luiz Otávio e Pedro Henrique; e avô babão da pequena Maria Eduarda. Era clínico geral e geriatra, diretor clínico do Hospital Manoel Cartucho, professor da Faculdade de Medicina de Campos e médico público deste município, além de ter sido secretário municipal em Saúde de São João da Barra, entre 2005 e 2006, na primeira gestão Carla Machado.

Foi, sobretudo, um médico humanista e caridoso, adorado pelas centenas de pacientes e ex-pacientes públicos e particulares, unanimente respeitado e admirado por todos os colegas, que colecionou uma legião de amigos verdadeiros em sua incansável lida na saúde, na vida, nas ruas, na mesa da sua casa, dos restaurantes, bares e botequins.

Abaixo, o blogueiro, seu “genro preferido”, por casado com sua única filha, mas também seu filho e seu irmão por afinidade de alma e adoção, republica o artigo postado originalmente aqui, no último dia 25 de janeiro, em virtude da homenagem que Pedrinho, como era carinhosamente conhecido, recebeu como “médico do ano”, pela Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia (SFMC)…

Quando a busca é o outro

Por Aluysio, em 25-01-2012 – 18h10

“Pois que, eu essência, não habito
Vossa arquitetura imerecida;
Meu Deus e meu conflito”

(carlos drummond de andrade)

sétimo selo

há os dias em que busco Deus
há aqueles em que topo o dedão
e O chamo de filho da puta
mas guardo na cômoda, por utopia
um pequeno grão de mostarda
e o amor da carpintaria

eu, quase sempre distante
como filho criado por outros
numa ilha sem fé no mar
e às vezes, meu Deus, tão seu íntimo
agarrado como uma criança
a quem a salvou de se afogar

minha imagem e semelhança?
falho demais para meu Deus
— teria mais em conta um gorila
ou a árvore que o aproxima do céu

caminho em sua vida
abençoado por sua sorte
encontro marcado com a morte
delirando chorar como hamlet
na certeza química dos anjos
nas dúvidas de antonius block

campos, 11/12/06

“O país não descoberto, de cujos confins/ Jamais voltou nenhum viajante”. Pela boca do príncipe Hamlet, em meio ao conhecido monólogo do “Ser ou não ser” (Ato III, cena 1), é assim que o dramaturgo William Shakespeare define a morte.

Desde o início do séc. 17, quando a mais famosa tragédia foi escrita, muito se tem debatido sobre o paradoxo da definição, proferida pelo atormentado príncipe num momento da peça em que ele já tivera contato com o fantasma do pai. Por óbvio, como “jamais voltou nenhum viajante”, após o espectro do rei surgir no mundo dos vivos para revelar ao filho homônimo que fora assassinado?

Da arte à vida que a imita, quem de fato já encarou a morte, e pode voltar com sua lembrança, não guarda dúvida sobre o divisado pelos olhos que transcendem à própria cara. Passa-se a integrar uma categoria diferente de gente — nem melhor, nem pior, mas diferente. Distinto à grande maioria dos que vivem, só a partir do renascimento se dá a gênese do sobrevivente, “viajante” sorteado com bilhete de ida e volta à fronteira do tal “país não descoberto”.

Todos que lá estiveram guardam suas cicatrizes. Não necessariamente visíveis em plano físico, embora sempre tangíveis diante de um igual em experiência.

Há pouco mais de seis anos, logo depois que comecei a namorar Lívia, minha esposa, conheci seu pai, Pedro Otávio Enes Barreto, Dr. Pedrinho dos amigos, vovô Pedinho da pequena Maria Eduarda. Se de cara distingui nele um igual, não demorou muito para que descobrisse se tratar de um tipo ainda mais especial de sobrevivente.

Do meu encontro com a morte, aos 19 anos, ficaram um buraco no lugar de testa e um apego radical a determinados valores pessoais, aos quais me agarrei para continuar vivo e busquei manter a despeito de qualquer necessidade de simpatia ou aceitação. Por sua vez, em Pedrinho, com apenas 16 anos, embora as consequências físicas tenham sido piores, aquelas operadas em seu caráter foram melhores, muito melhores.

Após mais de um ano integralmente submetido ao mais árduo trabalho de fisioterapia para tornar a andar, Pedrinho voltou a fazê-lo com limitações motoras. Diante delas, no lugar de se bastar em conceitos abstratos e ensimesmados, soube comungar sua própria luta pela vida numa peleja real por qualquer outra. Se a medicina e sua força de vontade o fizeram caminhar novamente, ele iria usar ambas, como as duas pernas, para fazer o mesmo por quem pudesse.

Quando o conheci, Pedrinho já era um dos clínicos gerais e geriatras mais conceituados de Campos. Ainda assim, acumulava seu concorrido consultório particular com a função de médico público municipal, professor da Faculdade de Medicina e diretor clínico do Hospital Manoel Cartucho. E, mesmo andando com o auxílio da surrada e inseparável muleta, nunca buscou esta em ninguém para deixar de cumprir sozinho os afazeres diários, guiando o próprio carro entre tantas frentes de trabalho e sua casa, da qual saía quase sempre de manhã cedo, para só regressar tarde da noite.

A medicina pública, na qual diz ter se dado sua verdadeira formação profissional, não teria exercício exclusivo no cargo conquistado mediante concurso. Também na prática privada, nunca se furtou em atender quem não pudesse pagar pela atenção de um profissional do seu nível. A muitos pacientes carentes, chegou por incontáveis vezes a fornecer acesso aos remédios que receitava, por meio de amostras grátis recebidas dos laboratórios.

Mesmo com a labuta incessante pela vida alheia, não se furtou em viver intensamente a sua própria. Amigo de primeira hora e necessidade de todos seus muitos amigos, nunca deixou de cultivá-los ou construir novos, em torno da mesa da sua casa, indiscriminadamente aberta a todos, ou nas dos restaurantes, bares e botequins. Afinal, como o poetinha Vinícius de Moraes, Pedrinho também “nunca viu uma boa amizade nascer em leiteria”.

A humanização que pregou à exaustão no exercício da medicina, sobretudo em sua atividade no magistério, era só uma extensão de todas as demais relações mantidas com seus semelhantes.

Por todos estes motivos e outros também, Pedrinho recebeu ontem o título de médico do ano pela Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia. Num auditório que o recebeu com palmas e ao final o ovacionou de pé, a entrega foi precedida pela fala de três colegas: Leonardo Bacelar, Makhoul Moussallém e Luiz Carlos Sell.

O primeiro deu o testemunho do pavor de uma paciente, ao saber, numa necessidade eventual, que não seria atendida por Pedrinho. Já o último fez a pertinente lembrança a Luiza Helena, minha sogra, para ressaltar que nenhum guerreiro lutaria com tanta coragem, diante de tantas dificuldades, se não tivesse ao lado uma camarada em armas da mesma têmpera.

Todavia, na minha opinião, partiu de Makhoul a definição mais precisa daquilo que todos que estavam ali, sentiam e sentem em relação ao homenageado da noite de terça. Antes de fechar sua fala com a aparência de superlativo, ao afirmar que Pedrinho não é o médico do ano, mas do século, o orador egresso de uma raça milenar endossou que sempre quando se vê diante de alguma dificuldade na vida e pensa em esmorecer, ministra para si mesmo a cura ao se mirar no exemplo do ex-paciente, ex-aluno e colega de lida.

Numa dessas coincidências da vida, daquelas que Nietzsche dizia não haver enquanto coincidências, Makhoul foi o neurologista que salvou a vida de Pedrinho e, anos depois, a minha. Se poucos, como nós dois, tiveram a sorte de ir e voltar, menos ainda, como ele, são os que dedicaram esse retorno à missão de adiar a inexorável partida daqueles que o cercam.

Pedrinho ensinou meu filho, a quem ele e Luiza adotaram como neto, a jogar xadrez. Ícaro já era fascinado pelo jogo desde que assistimos juntos a “O Sétimo Selo”, clássico do cinema de Ingmar Bergman, no qual o cavaleiro medieval Antonius Block, na pele do ator Max Von Sydow, assim que retorna das Cruzadas na Terra Santa para uma Europa arrasada pela peste, encontra a Morte, a quem propõe uma partida de xadrez, visando mais tempo à busca dos questionamentos existenciais aos quais, como Hamlet, dedicou sua vida sem achar respostas.

Com a modéstia do plebeu a humanizar uma alma das mais nobres, a busca de Pedrinho, após seu encontro com a morte, teve resposta pronta a indagações menos pretensiosas. Seu jogo, a partir dali, passou a ser estender a mão a quem estava do outro lado deste tabuleiro de nós todos e simplesmente precisava de ajuda.

Meio pai e meio irmão, meu e de outros tantos, é o melhor homem que já conheci.

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Este post tem 12 comentários

  1. Fatima Melo

    Leio sempre o seu blog e ja havia manifestado o apreço da sua escrita na homenagem realizada na FMC ao Dr. Pedro.
    Parabens por cada linha escrita e descrita com tanto AMOR por um HOMEM LUTADOR!
    Abraço

  2. sandra

    Meus mais sinceros sentimentos extensivos à familia do querido Dr Pedro Otávio,meu médico, como de muitos outros pacientes que ficaram órfãos

  3. Juliano

    Hoje perdemos um GRANDE AMIGO, UM GRANDE MEDICO, UM GRANDE PROFESSOR, UM GRANDE HOMEM…..Dr. Pedro (Pedrinho para os amigos), descanse em paz, sentiremos saudades……..

  4. IRENE SANTOS ALVES

    EMOCIONANTE……..ASSINO EM BAIXO TUDO QUE VOCÊ ESCREVEU, ELE FOI TUDO ISSO, E MUITO, MUITO MAIS……LUTADOR….

  5. Christiane Siqueira

    Dr Pedro….convivi c ele no meu tempo no Hospital Manoel Cartucho…humano, carinhoso e Amigo dos pacientes..todos vibravam c sua chegada, pq realmente fazia a visita médica diária com AMOR…Fazia da visita, momento único, muitas vezes conseguia com q o paciente desse a volta por cima e reagisse ao quadro clínico.Ficava preocupado, ligava mais tarde p saber do paciente, citando seu próprio nome, por sinal, guardava nome de todos, até dos q não eram assistidos por ele.Deixará muitas saudades.

  6. Savio Gomes

    Sem dúvida, um marcante exemplo, onde a competência estava sempre de mãos dadas com a humildade e o senso humanitário do “Cuidar”.
    Com total certeza, ainda que tenhamos sempre que nos conformar com a Morte, esta sensação de vazio ainda perdurará por um longo tempo na memória de cada um. Mas, há de prevalecer o exemplo de sua história de vida, de modo que novos médicos tenham nele a inspiração para o exercício da profissão com Amor, Competência e Dignidade.

  7. Gerson Lopes

    Que Deus receba mais este filho em seus braços, como ele tantas vezes recebeu a mim e a minha mães em seu consultório, pois muitas vezes o remédio que ela precisava não estava em nenhum laboratório e sim em suas palavras……saudades meu amigo.

  8. Diogo

    Aluysio, belas palavras e homenagens!!
    Tio Pedrinho vai deixar saudades!!!!!!

  9. Elizabeth Tudesco

    Pessoas como Pedrinho não morrem.Permanecem vivas no coração das pessoas,nos exemplos vivenciados com amor e fraternidade. Médico do corpo e da alma,fugindo da materialidade gritante.A todos da família,em especial a dona Eneida,Sr, Hercílio,a minhas amigas Luíza e Bia, o meu conforto e solidariedade nesta hora difícil de partida e de saudade.

  10. Guilherme

    Perdemos uma pessoa fabulosa, profissional de referencia e ser humano de grande valor e etica, perda inestimável para nossa sociedade.Sempre será lembrado!

  11. Beatriz

    Aluysio, nossos sentimentos a voces que brilhantemente lutaram de maos dadas a Dr Pedro para que ele pudesse ficar mais um tempo conosco, acompanho de longe essa luta e sentimos muito pela perda, homens como ele cada vez mais raros e nossa sociedade cada vez mais carente… uma abraco em Livia, Dona Eneida minha antiga professora tao especial e a toda a familia nesse momento de vazio. Fiquem em paz porque ele esta. Beatriz e Diomarcelo

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