Produção de Campos e olhos ao Oscar em “Ainda Estou Aqui”
“Um filme sobre uma família”. É como a produtora campista de cinema Maria Carlota Fernandes Bruno definiu duas vezes, em entrevista, o filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles. Sucesso de público e crítica, no Brasil e no mundo, conta a história real da família do ex-deputado federal e engenheiro Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello). Que é assumida por sua esposa, Eunice (na pele madura de Fernanda Torres e, já idosa, de Fernanda Montenegro), após o marido ser levado de casa por agentes armados em 1971. Para ser torturado, assassinado e ter seu corpo desaparecido pela nossa última ditadura militar (1964/1985).
Entre crueldade, perda, coragem e reconstrução, a tragédia da família e do país tem levantado prêmios em festivais internacionais. Foi selecionado pelo Brasil à disputa de uma indicação ao mais badalado deles, o Oscar. Talvez não só de filme estrangeiro, mas como a própria crítica dos EUA tem cogitado, também de atriz com Fernanda Torres, entre outras possíveis categorias. Além da performance em público e festivais de “Ainda Estou Aqui”, das chances deste ao Oscar e da própria carreira como produtora de grandes diretores do cinema nacional, Carlota falou da boa acolhida ao filme na sua Campos natal. Onde, a despeito do conservadorismo político da cidade, a evidência dos crimes da extrema-direita segue em cartaz nos cinemas.
Folha da Manhã – Desde sua estreia nacional em 7 de novembro, “Ainda Estou Aqui” liderou as bilheterias do país, à frente de blockbusters de Hollywood. E superou a marca de 1 milhão de espectadores em 11 dias. Vocês esperavam tanto sucesso de público no Brasil? Como o receberam?
Maria Carlota Fernandes Bruno – Recebemos com muita alegria o público brasileiro que lotou as salas de cinema na primeira semana e continua lotando. O filme se manteve em 1º no terceiro final de semana, alcançando mais de 1,7 milhão de espectadores e batendo superproduções norte-americanas. E, esta semana, batemos 2 milhões de espectadores. É a segunda maior bilheteria de um filme brasileiro depois da pandemia.
Folha – O filme também tem sido muito bem recebido por críticos e festivais internacionais de cinema. Recebeu prêmios importantes nos festivais de Veneza, Vancouver, Mill Valey, Miami e Pingayo. Como foi percebida essa recepção na Itália, Canadá, EUA e China?
Carlota – O filme teve a sua estreia mundial na Competição Oficial do Festival de Veneza e ganhou prêmio de melhor roteiro. Toda premiação é sempre importante. Na sequência, o filme foi exibido e muito bem recebido em Toronto, que é uma vitrine para filmes norte-americanos e também filmes de outras latitudes. Walter, Fernanda e Selton deram muitas entrevistas e elas repercutiram bastante na imprensa norte-americana e também aqui no Brasil. O filme já foi convidado para mais de 50 festivais internacionais e ganhamos prêmios de público nos festivais de Mill Valley, nos EUA; Vancouver, no Canadá; Pessac, na França; e na Mostra de São Paulo. O que só confirma que o público em várias latitudes gosta do filme.
Folha – “Ainda Estou Aqui” foi escolhido pela Academia e Cinema do Brasil como representante do país, junto aos de outros 85, a uma indicação ao Oscar de 2025. A lista prévia sai em 17 de dezembro e os indicados serão anunciados em 17 de janeiro. Qual é a real expectativa?
Carlota – Em 23 de setembro, “Ainda Estou Aqui” foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para ser o candidato brasileiro apto a concorrer a melhor filme internacional no Oscar. Vale dizer que a comissão de 25 membros, presidida pela atriz Barbara Paz, foi uma escolha unânime, o que é raro. Com isso, Sony Classics, a distribuidora americana, inscreveu o filme na plataforma da Academia Americana como fez os outros 85 candidatos de outros países. No dia 17, sai a lista com os 15 filmes escolhidos. E, em janeiro, sai a “shortlist” com os 5 candidatos que concorrerão na categoria de melhor filme internacional. É um trabalho árduo com muitas viagens, muitos debates e muitas projeções, para fazer com que o filme seja visto pelo maior número de pessoas nos Estados Unidos e Europa.
Folha – Desde “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, o Brasil disputa o Oscar, mas nunca levou. Isso aumenta a ansiedade do país e da equipe? E a pessoal do diretor Walter Salles, que já teve “Central do Brasil” (1998) indicado ao Oscar de filme estrangeiro?
Carlota – Acho que existe uma torcida dos brasileiros e brasileiras de que o filme e também a Fernanda Torres sejam indicados. Com a internet, temos visto esse movimento acontecer de forma muito natural e com humor. Acho que existe um clima de “agora vamos trazer o Oscar para o Brasil”. Enquanto produtora do filme e CEO da VideoFilmes, eu gostaria de que o filme fosse indicado, mas o mais gratificante até agora é ver o público voltar às salas de cinema para assistir ao filme. Tomara que se crie o hábito de o brasileiro prestigiar a sua cultura e assistir a outros filmes brasileiros que estão neste momento em cartaz como “Retrato de um Certo Oriente”, de Marcelo Gomes; “Malu”, de Pedro Freire; e a animação “Arca de Noé” (de Sérgio Machado e Alois Di Leo), baseado no disco de Vinicius de Moraes; entre outros.
Folha – “Central” também rendeu indicação ao Oscar de melhor atriz a Fernanda Montenegro. Em sua crítica à revista Deadline, Stephanie Bunbury escreveu sobre a atuação de Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui”: “deve catapultá-la (…) 25 anos depois de sua mãe, Fernanda Montenegro ter sido indicada ao Oscar”. Há esse critério de “justiça” visto por Hollywood?
Carlota – Não sei dizer se existe esse critério “de justiça” em Hollywood, mas acho que os brasileiros estão com esse sentimento. Aconteceu algo curioso e divertido: há alguns dias o site oficial da Academia postou uma foto da Fernanda Torres assim como de outras atrizes que participaram de um evento que se chama Governors Ball, em Los Angeles, e a foto da Fernanda teve mais de 800 mil comentários. Somos um país continental.
Folha – A parceria de Walter com Fernanda Torres começou em “Terra Estrangeira” (1995), no que ficou conhecido como “retomada” do cinema brasileiro após o desmonte da Embrafilme no governo Collor. Em que essa química entre diretor e atriz ajudou “Ainda Estou Aqui”?
Carlota – Walter sempre diz que “Ainda Estou Aqui” é um filme sobre uma família, feito por uma família. Voltar a ter essa parceria artística com as duas em um mesmo filme é muito especial na carreira dele. E é sobre isso que as longas parcerias dizem respeito, criar uma família fílmica.
Folha – Além das categorias filme, filme estrangeiro, atriz e diretor, outras indicações ao Oscar são consideradas possíveis a “Ainda Estou Aqui”: roteiro adaptado (Heitor Lorega e Murilo Hauser), ator coadjuvante (Selton Mello) e edição (Affonso Gonçalves). O que vocês projetam?
Carlota – As ações feitas pela Sony Classics são as mesmas, o filme tem que ser visto para ser promovido. Através das sessões e do boca a boca, o filme vai ganhando espaço em outras categorias. O que ajuda nas demais categorias são críticas e prêmios técnicos, isso alavanca as possibilidades do filme.
Folha – Numa adaptação de época impecável, como foi a produção entre você, Walter, Rodrigo Teixeira e Martine de Clermont-Tonnerre? Como foi sua trajetória pessoal e profissional de Campos à produtora de um dos maiores cineastas do Brasil? Como funciona essa parceria?
Carlota – Walter não atua como produtor, ainda que a VideoFilmes seja uma das produtoras do filme. A relação com Martine vem de longa data, ela foi a coprodutora francesa de “Central do Brasil”. Rodrigo é um produtor que tem uma expertise internacional, pois produz filmes aqui no Brasil, nos EUA e na Europa, e veio para somar. Com relação à minha trajetória, estou há 35 anos na VideoFilmes. Ao longo desses anos, fui crescendo profissionalmente com a confiança que tanto Walter como seu irmão João (Moreira Salles, cineasta documentarista, produtor e fundador da revista “Piauí”) depositaram em mim. Comecei como assistente pessoal do Walter e durante anos pude acompanhá-lo nas produções no Brasil, como também no exterior, com “Diários de Motocicleta” (2004), “Água Negra” (2005) e “Na Estrada” (2012). Essas experiências me deram estofo e, em 2011, assumi a VideoFilmes como diretora executiva e desde então venho produzindo documentários como “No Intenso Agora” (2017), do João; “Últimas Conversas” (2015), do mestre Eduardo Coutinho; “Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang” (2014), do Walter; e “Marinheiro das Montanhas” (2021), de Karim Aïnouz.. Nesse momento estou produzindo o novo documentário de Marcelo Gomes sobre Sidarta Ribeiro (neurocientista brasileiro) e outro sobre ativista indígena Txai Suruí e seu pai, o cacique Almir, codirigido por João e o coletivo de indígenas. Também sou produtora da animação “Arca de Noé”, dirigido por Sérgio Machado e Alois di Leo. Ao longo dos anos, a VideoFilmes também fez algumas coproduções nacionais e com a Argentina. Este ano, além de “Ainda Estou Aqui em Veneza”, sou produtora associada de “Manas”, primeiro longa-metragem de Marianna Brennand. Como “Ainda Estou Aqui”, “Manas” também foi premiado em festival. No momento também estou coproduzindo, junto com Joana Mariani e Eliane Ferreira, o longa-metragem “Cyclone”, longa de ficção ambientada na São Paulo de 1929. Enfim, posso dizer que é parceria longeva, gratificante que envolve confiança, admiração e respeito de ambos os lados.
Folha – Em Campos, Bolsonaro teve mais de 63% dos votos válidos no 2º turno a presidente em 2018, quando venceu, e em 2022, quando perdeu. E, a despeito do conservadorismo político da cidade, o filme também foi sucesso de público e segue em cartaz. Como campista, qual sua visão?
Carlota – Fiquei muito feliz quando soube que tivemos 40% a mais de campistas que foram assistir ao filme. O filme é acima de tudo sobre uma família, ou melhor sobre uma mulher forte e altiva, Eunice Paiva, que teve que se reinventar quando o marido é levado de casa sem nenhuma explicação e nunca mais retornou. É sobre a luta dela para conseguir ter um atestado de óbito, 25 anos depois do desaparecimento do Rubens Paiva. E também por ter se tornado uma advogada defensora da causa indígena e, acima de tudo, por manter a família unida que ficou órfã desse pai. Essa história poderia ter acontecido com qualquer família. Para mim, cinema, a arte em geral, está acima de qualquer viés ideológico. Como campista, só tenho a agradecer a cada campista que já assistiu e ainda vai assistir ao filme na tela de cinema.
Confira o trailer do filme: