Brasil e América do Sul têm um novo xerife no futebol

 

O Botafogo foi, pela primeira vez, campeão da Libertadores da América em 2024, título mais importante dos seus 120 anos de história no futebol

 

 

Botafogo, por isso é que tu és

 

Os inquestionáveis 3 a 0 que levou ontem (11), no Qatar, do Pachuca, 16º colocado do campeonato do México, foi um vexame do Botafogo? Sim, foi. Isso mancha o ano histórico do clube carioca, em que conquistou com merecimento uma inédita Libertadores e um Brasileiro que não levava há 29 anos? Absolutamente, em nada!

Flamengo e Palmeiras amassados — Na balança deste 2024 perto do fim, o Botafogo está de parabéns. No Brasileiro, não apenas venceu, mas amassou os dois clubes que dividiam nos últimos 8 anos a hegemonia do futebol nacional. Em 18 de agosto, meteu 4 a 1 no Flamengo, seu maior rival regional e campeão brasileiro em 2019 e 2020. E, em 26 de novembro, deu de 3 a 1 no Palmeiras, seu maior rival nos dois últimos Brasileirões, que o clube paulistano levantou em 2016, 2018, 2022 e 2023.

Do basquete ao futebol — Em 2024, o Botafogo meio que repetiu a Palmeiras e Flamengo, no futebol, a advertência que Michael Jordan deu a Magic Johnson e Larry Bird num dos jogos-treino do Dream Team do basquete dos EUA antes das Olimpíadas de Barcelona 1992. No qual Johnson diz que Jordan deu a maior exibição de basquete que viu em sua vida.  Ao final dela, como gênio dos anos 1990, quando deu ao Chicago Bulls 6 títulos da NBA, Jordan disse aos dois grandes astros dos anos 1980, nos quais não existiu final da NBA sem o Los Angeles Lakers de Magic ou o Boston Celtics de Bird:

— Vocês tiveram o seu tempo, mas tem um xerife novo na cidade.

Exorcismo — No caso do Botafogo, diferente de Jordan, bem verdade que houve titubeio. Mas após reconquistar em 2024 o Brasileiro que vencera pela última vez em 1995, além de outro, atribuído pela CBF à conquista da Taça Brasil em 1968, do qual até o Goytacaz participou, o Botafogo exorcizou seus fantasmas de 2023. Quando chegou a ter 13 pontos de vantagem, mas pipocou para perder o Brasileirão mais ganho da história. Em realidade incredível à ficção, foi a maior assombração do futebol brasileiro desde os 7 a 1 da Alemanha em 2014.

Cara e caráter de campeão — Ajustes de contas no Brasileiro ao largo, a Libertadores da América foi a grande conquista do Botafogo. Não só de 2024, mas dos 120 anos de história do clube. No 1º jogo da semifinal, goleou por 5 a 0 o copeiro uruguaio Peñarol, que vinha de eliminar o Flamengo nas quartas. Mas seria na final de jogo único, ao bater o Atlético Mineiro por 3 a 1, mesmo com um homem a menos desde os 30 segundos de jogo e sem o técnico português Artur Jorge promover substituições defensivas, que o Botafogo mostrou cara e caráter de verdadeiro campeão.

Botafoguense médio — Embora haja exceções, não é equivocado o juízo que atribui o caráter arrogante, grandiloquente e megalômano ao torcedor flamenguista médio. O que se reforça pelo fato de o Flamengo ser o clube de maior torcida e mais títulos estaduais, nacionais e internacionais entre os cariocas. Com menos títulos, em diferença agora menos longínqua, o torcedor médio do Botafogo tem características bastante semelhantes com aqueles que julgam seus maiores rivais — no antiflamenguismo que os une a vascaínos e tricolores.

Além da bipolaridade política — Essa característica botafoguense, na média arrogante do flamenguista, extrapola até a bipolaridade política do país. Pode ser um ex-marxista convertido em democrata de centro-esquerda. Que, quando se trata do seu Fogão, vira o típico tiozão de WhatsApp bolsonarista. Pode ser um profissional da saúde que negou a ciência para defender cloroquina na pandemia da Covid. E delirou com a anulação do Brasileiro que o Botafogo perdeu no campo em 2023, como com uma nova eleição presidencial após a que perdeu com Bolsonaro nas urnas em 2022.

Bravataria — Essa falta de contato com a realidade não é exclusiva à torcida pelo clube. Se repete também na torcida pela Seleção Brasileira, na qual não há torcedor mais megalômano que o botafoguense médio. A ele(a), pouco importa se o Brasil não ganha jogo eliminatório de Copa do Mundo contra uma seleção europeia desde a final vencida contra a Alemanha em 2002 — 22 anos e seis Copas atrás. Na última, umas cervejas a mais bastaram para bravatear “Brasil campeão” após a vitória de 4 a 1 nas oitavas sobre o temível esquadrão da… Coreia do Sul.

Parado no tempo de Pelé e Garrincha — É a mesma soberba tola, e em geral ébria, capaz de ver favoritismo do Brasil no futebol mundial porque “nós já tivemos Pelé e Garrincha”. Mesmo que os dois gênios, já falecidos, não joguem pela Seleção há 54 anos — mais de meio século. Independente do seu clube do coração, não há notícia de um torcedor da Hungria que julgue sua seleção favorita numa Copa do Mundo porque seu país já teve Puskás. Como não há torcedor da Inglaterra que julgue esta favorita, nem mesmo na Euro, porque seu país já teve Stanley Matthews.

Mesmo tão apaixonados pelo futebol quanto os brasileiros, até os botafoguenses, o fato é que húngaros e ingleses têm mais noção de ridículo.

Melhores no Mundial — A derrapada do Botafogo ontem contra o Pachuca o torna historicamente inferior ao Flamengo de 2019, que foi um time melhor. E também ganhou naquele mesmo ano o Brasileiro, com mais facilidade, e a Libertadores. Assim como, em resultados internacionais, o Botafogo de 2024 ficou abaixo do Palmeiras de 2021/2022 e do Fluminense de 2023. Mesmo que estes dois tivessem times tecnicamente inferiores, de futebol menos vistoso, que o atual campeão do Brasil e América do Sul.

Nas finais — O fato é que Flamengo de 2019, o Palmeiras de 2021 e o Fluminense de 2023 chegaram à final do Mundial. Em que todos perderam. Flamengo e Palmeiras ainda conseguiram jogar de igual para igual, respectivamente, contra o Liverpool (0 a 1 na prorrogação) e o Chelsea (1 a 2 também definido na prorrogação). O Fluminense também tentou jogar de igual para igual contra o Manchester City de Pep Guardiola. E tomou uma sapatada de 0 a 4.

Luso espanta chororô — Antes de o modelo da Copa do Mundo de Clubes estrear em 2025, o Botafogo foi o primeiro sul-americano a ter que disputar as quartas de final do Mundial. O Flamengo de 2019, o Palmeiras de 2021 e o Fluminense de 2023 entraram direto nas semifinais, diminuindo a possibilidade de tropeço. Que, em 2024, não deve ser justificado pelo cansaço, como o próprio Artur Jorge frisou para espantar o chororô. Como, antes do português, a pipocada no Brasileiro de 2023 não deveria ser creditada a erros de arbitragem tão supostos quanto seletivos.

Abaixo do Santos de Pelé — Pela primeira vez no último quarto de século, o Botafogo não precisa mais viver de um passado verdadeiramente glorioso, mas distante, quando deu com o Santos a base da Seleção Bicampeã Mundial em 1958 e 1962. Testemunhado por poucos torcedores ainda vivos, foi um tempo em que os estaduais de clubes importavam mais que os títulos nacionais e internacionais. A não ser ao Santos de Pelé, que superou o Botafogo de Garrincha para ser bicampeão da Libertadores e do Mundial em 1962 e 1963.

Glória presente e futuro da SAF — O Botafogo teve o melhor ano da sua história em 2024. Não precisa mais viver de ressentimento pela distância do seu passado de glória. Que, finalmente, se fez maior no presente. E mesmo sem o craque argentino Almada em 2025, quer Artur Jorge fique ou não, promete durar enquanto continuar entrando o dinheiro do controverso milionário estadunidense John Textor. Em um modelo de SAF que demanda tempo para provar ser capaz de deixar residual sustentável. E que Palmeiras e Flamengo dispensam para serem donos dos próprios narizes.

É a economia, estúpido! — O tropeço do Botafogo contra o Pachuca não macula o ano do clube brasileiro. Nem fará com que o 16º colocado do campeonato do México assuma a ponta da tabela. Na verdade, por motivos econômicos, só provou que a distância entre o futebol de clubes da Europa e o da América do Sul é muito maior do que deste para América do Norte, Ásia e África.

Novo xerife da Estrela Solitária — No Brasil e na América do Sul, no entanto, há um novo xerife na cidade. Cuja autoridade se impõe no brilho da Estrela Solitária.

 

Atualização às 14h38 de 13/12 para correção.