Para quem passou pelos anos 80 do século passado com alguma consciência do que acontecia neste planetinha azul e girante, “A Dama de Ferro” não deixa de ser um interessante revival daquela década, sobretudo em relação à Grã-Bretanha (GBR) e à bipolaridade do mundo de então, ainda dividido entre os vencedores da II Guerra Mundial (1939/45), tendo de um lado os EUA e a GBR (dois países unidos e separados pela mesma língua) e, do outro, a extinta União Soviética.
Todavia, mesmo para quem é atento aos tantos erros de avaliação já cometidos nas premiações do Oscar, inegável que, pelo menos na edição deste ano, a festa maior de Hollywood foi precisa ao entregar suas estatuetas de melhor atriz e melhor maquiagem para essa biografia cinematográfica da ex-primeira-ministra britânica (depois baronesa) Margaret Thatcher.
Apelidada de “Dama de Ferro” justamente pelo bloco soviético que ajudou a desmontar, realmente impressiona sua personificação visceral por Meryl Streep, alcançada não só pela minúcia do talento desta grande atriz, agraciada com seu terceiro Oscar, como pelo perfeito trabalho de maquiagem de Marese Lagan, ambos a endossar o generoso quinhão de artesanato cênico que ainda pode fazer a diferença nestes tempos de computação gráfica.
Como é comum em biografias, a narrativa do filme se desenvolve em flashback, já a partir da fase de ostracismo político e do quadro clínico de demência, que foi admitido publicamente pela própria família desde 2000, no qual ainda hoje (sobre)vive a velha leoa britânica. Mas, mesmo nele, assombrada pelo fantasma do marido morto (Jim Broadbent, em merecida indicação ao Oscar de coadjuvante), não deixa de continuar atenta à economia doméstica, característica que, ao ser transplantada ao governo de nações, como a personagem mesma diz em determinado momento, passou a ser conhecida como responsabilidade fiscal.
Ao tentar implantá-la na Grã-Bretanha, após vencer no mundo de homens da política, a começar em seu próprio Partido Conservador, Ms. Thatcher teve que enfrentar a ferrenha oposição dos parlamentares do Partido Trabalhista, as greves e os protestos incessantes dos sindicatos britânicos, as ações terroristas do IRA (braço armado da luta pela independência da Irlanda do Norte), inclusive contra sua própria vida, e uma guerra contra a Argentina unida sob ditadura militar fascista, na disputa por um arquipélago perdido no Atlântico Sul, que os britânicos chamam de Falklands e, nossos hermanos, de Malvinas.
Neste conflito, que igualmente marcou argentinos e ingleses, deixando feridas ainda não cicatrizadas desde aquele hoje distante 1982, na cena entre a primeira-ministra e o emissário estadunidense que tenta convencê-la a não reagir militarmente à invasão das ilhas, toda a ousadia e contundência da primeira ficam evidenciadas no pertinente paralelo feito com o ataque japonês a Pearl Habor, no arquipélago do Havaí, que motivou a entrada dos EUA na II Guerra, em 1940.
Vitoriosa em todos seus enfrentamentos, enquanto esteve à frente do governo britânico, entre 1979 e 1990, a líder britânica foi também uma figura de proa na derrocada do bloco socialista europeu, ao lado do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan (1911/2004) e do papa João Paulo II (1920/2005). Não por outro motivo, o filme entrecorta as cenas da “Dama de Ferro”, valsando exitosa com Reagan, com as imagens reais da queda do Muro de Berlim, em 1989, ironicamente apelidado de “Cortina de Ferro” pelo outro grande ex-primeiro-ministro britânico do séc. 20, Winston Churchill (1874/1965).
Ferida de morte, a União Soviética cambalearia mais um ano após a saída de Thatcher do poder, esfacelando-se completamente em 1991.
Um pouco antes, talvez inebriada com as sucessivas vitórias diante de tantos e tão grandes desafios, o filme não esconde quando a arrogância da primeira-ministra começa a fazer inimigos em sua própria equipe de governo, que depois lhe impõem a queda, de maneira até humilhante. Entretanto, são omitidos os interesses econômicos (sempre existentes) escondidos atrás do seu projeto político, já que seu marido e grande incentivador à vida pública, no lugar de um simples comerciante de sucesso, como o filme furtivamente apresenta, era na verdade um alto executivo da indústria petrolífera.
Talvez não seja irrelevante ressaltar, por exemplo, que hoje os britânicos exploram petróleo nas Malvinas…
Entre o que é revelado e omitido na tela, relevantes são os principais contrapontos masculinos da grande mulher, além do marido, feitos também na figura marcante de seu pai, Alfred Roberts, um pregador metodista, comerciante orgulhoso e também político, e do seu filho Mark Thatcher, sempre ausente na vida adulta.
Para alguém que só aceitou seu papel de esposa e mãe, desde que sua vida não fosse consumida como uma dona de casa lavando xícaras, emblemática aquela deixada ainda suja por Lady Thatcher, dentro da pia da sua cozinha, na última do filme dirigido pela inglesa Phyllida Loyd, que já tinha feito uma parceria com Meryl Streep de sucesso comercial, no musical “Mama Mia” (de 2008).
Assim como o fato do embate de “ferro” contra “ferro”, entre uma mulher e um muro que dividia o mundo, ter sido vencido pela primeira, não deixa de ser igualmente irônico constatar que, mesmo conservadora à medula e léguas distante de qualquer esteriótipo feminista, Margaret Thatcher talvez tenha sido a mulher mais forte do séc. 20.