(“XINGU”) Os brancos europeus dominaram a África, mas hoje o continente pertence, em sua esmagadora maioria, aos negros africanos. Os brancos europeus dominaram a Ásia, mas hoje ela não só pertence aos asiáticos, como seus gigantes China e Índia, há algum tempo, têm invertido a mão na dominação econômica do resto do mundo.
Os brancos europeus dominaram também as Américas. E, hoje, para saber a quem elas pertencem, basta que você, leitor, assim como um seu igual nos EUA, ou na Argentina, ou em Cuba, se olhe no espelho antes de responder: onde estão os índios que ocupavam exatamente o seu lugar, antes de Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio darem as caras por aqui, nos sécs. XV e XVI?
Desde lá, o genocídio sistemático dos índios, pelo aço, pela pólvora, pela peste e pelo aculturamento, sempre a serviço de interesses econômicos, só começou a ser estancado e parcialmente revertido no século passado. No Brasil, desde o final do séc. 19, quando o militar Cândido Rondon, de ascendência indígena, deu início às suas pioneiras missões no Centro-Oeste e depois no Norte do país, que visavam pacificar os índios e integrá-los ao nosso modelo de civilização, trabalho que seria depois complementado pelos irmãos sertanistas Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas.
O filme dirigido por Cao Hamburguer começa com os dois irmãos mais novos, Cláudio (João Miguel, bem como sempre) e Leonardo (Caio Blat, na média), em 1943. Após largarem os empregos em São Paulo, eles buscam se misturar aos peões, via de regra analfabetos, que atenderam em massa ao recrutamento do governo federal de Getúlio Vargas para a expedição Roncador-Xingu, no Brasil Central. Integrados a ela, contatam o irmão mais velho, Orlando (Felipe Camargo, surpreendentemente convincente), que se junta a eles na busca por “terras onde nenhum homem branco pisou antes”.
E aqui o parêntese merece ser aberto à constatação de que, inicialmente, os Villas-Bôas buscavam aventura, não a defesa da causa indígena, e apenas integravam a missão, dissociados de qualquer protagonismo. O ponto de virada para os três irmãos se dá a partir do contato com os índios, como resume Orlando: “Para mim eles não eram selvagens. Eu, simplesmente estava diante de outra civilização. O encontro mudou as nossas vidas para sempre”.
A liderança se constrói de maneira natural, quando os irmãos impõem à missão o lema de Rondon, não creditado no filme: “estar disposto a morrer, mas não a matar”. Mas se, ao abrir mão do uso bélico do aço e da pólvora, os Villas-Bôas conquistam a confiança dos índios, a danação destes não deixaria de se cumprir na repetição do que aconteceu desde que o primeiro europeu pisou naquilo que depois batizaria de América: sem causar maiores danos aos homens brancos, a gripe levada por eles acaba dizimando metade da tribo sem anticorpos que os acolheu.
A partir daí, cientes do mal que, mesmo sem dolo, causaram (e que, inevitavelmente, continuariam a causar), se inicia uma mesma batalha em defesa dos índios, à qual cada irmão se entrega em frente própria: Leonardo com ingenuidade e descompromisso; Cláudio com seu idealismo radical, mas contradições reais; cabendo o pragmatismo, mas também o comprometimento político, à lida equilibrista de Orlando.
Entre erros e acertos, o fato é que a luta contra as doenças, os garimpeiros, os fazendeiros, o poder político local, os interesses militares e todos os demais paradoxos de quem tenta preservar alguém daquilo que representa (“nós somos o antídoto e o veneno”, como sentencia Cláudio), consegue ser exitosa na criação do Parque Nacional (hoje Indígena) do Xingu, em 1961, pelo então presidente Jânio Quadros. O projeto idealizado pelos irmãos Villas-Bôas, mas redigido pelo antropólogo Darcy Ribeiro, foi responsável pelo ainda hoje maior território indígena do mundo, com mais de 27 mil km2, no norte do Mato Grosso.
Todavia, nem mesmo o filme, claramente feito para louvar a vida e a obra dos Villas-Bôas, tem a pretensão de que estes tenham dado alguma solução definitiva à questão. Na última cena, em missão derradeira para salvar uma tribo ainda virgem de contato com o branco, que tentam tirar do caminho da Rodovia Transamazônica (a BR 230), obra faraônica da ditadura militar brasileira (1964/85), Orlando e Cláudio são encarados pelo índio com indagações gritadas em sua mudez e ainda hoje sem respostas.
Não é a primeira tentativa do cinema nacional de se abordar o choque entre índios e brancos, com clara pretensão de eco internacional, a reboque do sentimento de culpa politicamente correto dos dominadores.
Em obra de ficção, o cineasta argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco apostou num elenco de estrelas de Hollywood, para fracassar aqui e lá fora com seu “Brincando nos Campos do Senhor”, de 1991. Um pouco antes, em 1989, o diretor Ruy Guerra havia se apoiado num elenco de astros brasileiros para levar às telas um conhecido romance de Antônio Callado, “Kuarup”. Todavia, noves fora uma indicação à Palma de Ouro em Cannes, o filme também não foi sucesso de público ou crítica.
Mais recentemente, em 1999, o diretor Luiz Alberto Pereira levou às telas “Hans Staden”, nome do mercenário alemão que caiu prisioneiro dos canibais Tupinambá, entre o litoral do Rio e São Paulo, na hoje distante realidade do séc. XVI. Foi uma adaptação mais fiel, embora de menor impacto, do que “Como era Gostoso o meu Francês”, do mestre Nelson Pereira dos Santos, filme de 1970, indicado ao Leão de Ouro em Berlim e também baseado nos impressionantes relatos que Staden escreveu e publicou quando conseguiu regressar à Europa.
Entretanto, na busca de um paralelo com “Xingu”, o filme que melhor se presta a isso, embora retrate a realidade da América do Sul no séc. XVIII (ou pretenda retratar, já que foi acusado de cometer erros históricos), talvez venha de fora, com o britânico “A Missão”, de 1986, dirigido pelo inglês Roland Joffé e ganhador da Palma de Ouro em Cannes. Quando os acordos políticos entre os católicos e já decadentes impérios coloniais de Portugal e Espanha põem em risco as missões jesuítas no sul do continente, onde os índios eram reunidos em comunidades economicamente competitivas, dois padres da ordem assumem rumos diferentes para enfrentar a ameaça.
Entre o Grabiel interpretado pelo inglês Jeremy Irons e o ex-mercenário Rodrigo Mendoza encarnado pelo estadunidense Robert De Niro, o caminho da política eclesiástica tentado pelo primeiro e o do enfrentamento armado tomado pelo segundo se entrecruzam na defesa da mesma causa, destinados ao mesmo desfecho trágico. Equilibrado entre o pragmatismo de Orlando e o idealismo de Cláudio, pelo menos “Xingu” chega ao seu final com uma questão ainda em aberto.