Crítica de cinema — Para rir da própria cara

Caixa de luzes

 

 

 

Birdman

 

 

Mateusinho 5Birdman — Com “Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância)”, o mexicano Alejandro González Iñarritu ganhou de uma só vez, no Oscar 2015, os três prêmios mais importantes para um cineasta: filme, direção e roteiro original — que assinou junto com o estadunidense Alexander Dinelaris e os argentinos Nicolás Giacobone e Armando Bó. De quebra, com o craque Emmanuel Lubezki, outro mexicano, o filme ainda levou a estatueta de melhor fotografia. Seu mais forte concorrente nesta categoria, o polonês “Ida” teve que se contentar com o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Iñarritu impressionou mundialmente já em seu primeiro longa, o explosivo “Amores brutos” (2000), que lançou o ator mexicano Gabriel García Bernal e veio ainda reverberando o impacto profundo que Quentin Tarantino causou no cinema do mundo, sobretudo nos jovens diretores, a partir dos anos 1990. Cartão de visitas apresentado, o mexicano teria abertas para si as portas de Hollywood, onde se afastou da violência gráfica de Tarantino ao dirigir os reflexivos “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), antes de voltar a filmar novamente em espanhol, com “Biutiful” (2010), outro filme “cabeça”, estrelado por Javier Barden.

Mas se começou na esteira de Tarantino e dela se afastou, é um dos elementos mais caros ao diretor estadunidense que faz a diferença no novo filme do cineasta mexicano: a metalinguagem. Em “Birdman”, Iñarritu usa o cinema para dialogar não só com o cinema, mas com a sua própria condição de pilar da sociedade do entretenimento, na qual é contraposto à arte que o cinema, não sem razão, sempre foi acusado de copiar: o teatro.

Michael Keaton é Riggan Thomson, ator veterano que no passado atingiu a condição de astro de Hollywood ao interpretar o super-herói Birdman, mas desistiu da franquia no auge do sucesso, caiu no ostracismo e agora pretende dar a volta por cima ao adaptar para o teatro da Broadway um conto do escritor Raymond Carver. Ele também dirige e estrela a peça, na qual investiu tudo que restou da fortuna das bilheterias de cinema de um passado que, na pele do próprio Birdman, volta para atormentá-lo como alter ego, tentando seu criador com a possibilidade de um retorno triunfante ao personagem, numa típica sequência blockbuster hollywoodiana, enquanto assiste a tantos outros fazerem sucesso com as franquias de super-heróis.

Qualquer coincidência de Riggan Thomson com o próprio Michael Keaton, em outra metalinguagem escancarada do roteirista-diretor, não é mera semelhança. Na vida real, o ator protagonizou o Homem Morcego para abrir o filão dos filmes de super-heróis em Hollywood, com “Batman” (1989) e “Batman — O retorno” (1992), ambos dirigidos por Tim Burton. E depois de ganhar rios de dinheiro e abrir mão de fazer a sequência (“Batman eternamente”, de 1995, dirigido por Joel Schumacher e estrelado por Val Kilmer), a verdade é que os papéis mais relevantes de Keaton foram como dublador nas animações “Carros” (2006), de John Lasseter; e “Toy Story 3” (2010), de Lee Unkrich.

Além de Keaton, quem também brilha nos palcos e coxias levados à tela são Edward Norton e Emma Stone, indicados com justiça ao Oscar de ator e atriz coadjuvantes. Ela interpreta Sam Thonson, filha de Riggan e sua assistente de direção, dependente química em recuperação, inteligente e ressentida da ausência do pai na infância. Por sua vez, depois de também atuar numa franquia de super-herói, protagonizando “O incrível Hulk” (2008), de Louis Leterrier, e de ter andado meio sumido de lá para cá, Norton aparece na pele do típico ator novaiorquino de teatro Mike Shiner, ególatra, arrogante, irascível, mas inegavelmente talentoso.

Com a câmera quase sempre no ombro de quem filma, Inãrritu usa e abusa do plano sequência, com poucos cortes, imprimindo um caráter documental só quebrado pelo refinamento da fotografia de Lubezki e pelo surrealismo dos delírios entre Riggan e Birdman. Sua crítica à sociedade big brother de si mesma e do próximo, nos EUA, no México, ou no Brasil, é mordaz, e dela não escapam nem os críticos como este que escreve. Sátira social tão contundente quanto “O show de Truman” (1998), do mestre australiano Peter Weir, “Birdman” é mais atual, por englobar todos os recursos presentes de bisbilhotagem e celebrização do universo virtual, sempre confrontados pela realidade como a cara de quem mergulha contra o muro chapiscado.

Cinema dentro do cinema, passando pelo teatro, na tal da metalinguagem, está longe de ser novidade, desde que Shakespeare usou uma peça dentro da peça, em 1589, para revelar o autor do fraticídio do rei, em “Hamlet”, a maior das tragédias. Na máscara oposta da comédia, “Birdman” vale o Oscar e o ingresso. Só não vale sair do cinema considerando virtude ignorar que se riu da própria cara.

 

Mateusinho viu

 

 

Publicado hoje da Folha Dois

 

Confira o trailer do filme:

 

 

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Elizabeth Netto Almeida

    Hum, gostei sim. Um filme com princípio, meio e fim. Coisa rara no cinema moderno!

  2. ocinei

    Ótimo texto e crítica. O filme é de atores que nos oferecem oportunas reflexões por meio de roteiro e direção brilhantes. Valeu,Poetman.

  3. Aluysio

    Caro Ocinei,

    Vindo de vc, é elogio dobrado. Estava para te falar na última quarta, na sessão do “Relatos selvagens”, do Cineclube Goitacá, mas acabei não tendo uma oportunidade mais reservada. Andei dando uma lida descompromissada em alguns de seus últimos textos, lá no http://ocineitrindade.blogspot.com.br/ , e gostei particularmente de dois, um em prosa, um em verso. O primeiro, foi como vc dobrou com o amor cristão o fundamentalismo raivoso do jihadista argelino no confronto (felizmente) virtual. No post acima dele, gostei do “Poema de um homem perdido”, que pela linguagem meio de prosa em verso e pelo homoerotismo desavexado, me fizeram lembrar muito a poesia fescenina do grego Konstantino Kaváfis, que considero entre as melhores já produzidas, independente da orientação sexual do eu poético.

    Abç e grato pela chance da conversa!

    Aluysio

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