Era o final de uma manhã de sol em Atafona, já no outono, com temperatura ainda de verão. Por volta de meio-dia, ele já havia corrido, pulado corda, levantado pesos, feito abdominais e treinado pêndulo (esquivas e contragolpes de boxe), antes de encerrar mais de duas horas de atividade física tirando o saco de areia para dançar. Enquanto alternava jogo de pernas e sequências de socos na garagem, guarda sempre alta com os braços já pesados, rufava no último volume da TV da sala a faixa “São Gonça” do DVD de Seu Jorge e Ana Carolina. Na consonância do ritmo da música, dos movimentos do corpo e do saco de areia indo e voltando ao impacto de cada murro, à beira do esgotamento por todo o esforço feito até ali, permitiu-se um clinch com seu oponente passivo.
Foi abraçado ao saco de areia, desidratado e tentando recuperar o fôlego durante preciosos segundos, que avistou o camaleão no chão da entrada da garagem, ao sol a pino do meio-dia. Diferente dele, o bicho apreciava o calor com seu corpo imóvel, mexendo apenas a cabeça em convulsão, como se num orgasmo múltiplo e intermitente. Ao notar a sombra do crânio arrefecendo o cimento quente do chão, o homem quis mais que tudo se abrigar sob o seu frescor, em inveja e comunhão com o animal de sangue frio. Olharam-se nos olhos por um instante, pupilas redondas e elípticas, antes que o dono destas partisse para sempre, na explosão muscular súbita dos répteis. Depois, como membro perdido de um lagarto, brotaram versos, pontuados ao final na pretensão cabralina:
o pugilista e o camaleão
(i)
seco dos socos flechados
no saco,
banhado pelo que mina dos poros
em sal,
o pugilista lagarteia a sombra
de seta,
da cabeça convulsa do camaleão.
(ii)
da temperatura do réptil, o sangue frio
a ritmar todo seu corpo em instinto,
seu dilema entre predador e presa,
mais a condição do movimento medido,
desmedida à demanda de improviso,
lagarteia no camaleão o pugilista.
(iii)
cada golpe na ponta da língua,
dois punhos no lugar de um rabo,
sua investida em dissimulação,
mais a fervura do sangue de bicho
já desmamado de seio e de sol,
lagarteia no pugilista o camaleão.
campos, 08/04/09
Não gostei do poema. Adorei. Fui a nocaute. Grato pelo lagarteio. Abraço.
Caro Ocinei,
Grato a vc, amigo, pela generosidade da troca.
Abç fraterno e ótimo feriado!
Aluysio