Poema do domingo — O camaleão e o pugilista

Atafona, agosto de 2014
Atafona, agosto de 2014 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

Era o final de uma manhã de sol em Atafona, já no outono, com temperatura ainda de verão. Por volta de meio-dia, ele já havia corrido, pulado corda, levantado pesos, feito abdominais e treinado pêndulo (esquivas e contragolpes de boxe), antes de encerrar mais de duas horas de atividade física tirando o saco de areia para dançar. Enquanto alternava jogo de pernas e sequências de socos na garagem, guarda sempre alta com os braços já pesados, rufava no último volume da TV da sala a faixa “São Gonça” do DVD de Seu Jorge e Ana Carolina. Na consonância do ritmo da música, dos movimentos do corpo e do saco de areia indo e voltando ao impacto de cada murro, à beira do esgotamento por todo o esforço feito até ali, permitiu-se um clinch com seu oponente passivo.

Foi abraçado ao saco de areia, desidratado e tentando recuperar o fôlego durante preciosos segundos, que avistou o camaleão no chão da entrada da garagem, ao sol a pino do meio-dia. Diferente dele, o bicho apreciava o calor com seu corpo imóvel, mexendo apenas a cabeça em convulsão, como se num orgasmo múltiplo e intermitente. Ao notar a sombra do crânio arrefecendo o cimento quente do chão, o homem quis mais que tudo se abrigar sob o seu frescor, em inveja e comunhão com o animal de sangue frio. Olharam-se nos olhos por um instante, pupilas redondas e elípticas, antes que o dono destas partisse para sempre, na explosão muscular súbita dos répteis. Depois, como membro perdido de um lagarto, brotaram versos, pontuados ao final na pretensão cabralina:

 

 

 

 

o pugilista e o camaleão

 

(i)

seco dos socos flechados

no saco,

 

banhado pelo que mina dos poros

em sal,

 

o pugilista lagarteia a sombra

de seta,

 

da cabeça convulsa do camaleão.

 

 

(ii)

da temperatura do réptil, o sangue frio

a ritmar todo seu corpo em instinto,

 

seu dilema entre predador e presa,

mais a condição do movimento medido,

desmedida à demanda de improviso,

 

lagarteia no camaleão o pugilista.

 

 

(iii)

cada golpe na ponta da língua,

dois punhos no lugar de um rabo,

sua investida em dissimulação,

 

mais a fervura do sangue de bicho

já desmamado de seio e de sol,

 

lagarteia no pugilista o camaleão.

 

campos, 08/04/09

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Ocinei Trindade

    Não gostei do poema. Adorei. Fui a nocaute. Grato pelo lagarteio. Abraço.

  2. Aluysio

    Caro Ocinei,

    Grato a vc, amigo, pela generosidade da troca.

    Abç fraterno e ótimo feriado!

    Aluysio

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