Foi no Egito Antigo (3.150 a.C./ 31 a.C.) que atribuíram o centro das emoções humanas ao coração. Hoje sabemos que essa função pertence ao cérebro, mais precisamente à região central do tálamo. Famosos por sua medicina avançada na Antiguidade, os egípcios notaram que nosso pulso acelerava quando sentimos paixão, raiva, medo, angústia, ou qualquer outro tipo de emoção mais forte. E eles já sabiam que a pulsação era ditada pelas batidas do coração. Assim, a conclusão equivocada, apesar de lógica.
O fato é que, mesmo vivendo sob a luz das ciências modernas e a difusão dos seus conceitos, pelo menos desde o final do séc. 19, o músculo cardíaco manteve intocada no imaginário popular sua condição de centro emocional do homem. E essa condição de ideograma, na qual o simples desenho do coração é imediatamente associado às emoções, sobretudo ao amor, permaneceu também nos versos de dois poetas cujas vidas e obras foram profundamente marcadas pelo avanço científico da modernidade, ambos nascidos e criados na fantástica ebulição da virada do séc. 19 ao 20: o brasileiro Augusto dos Anjos (1884/1914) e o português Fernando Pessoa (1888/1935).
Seja para um pré-modernista como Augusto, ou mesmo o mais modernista dos heterônimos de Pessoa, como foi o caso de Álvaro de Campos, o coração que “tem catedrais imensas”, revelado pelo brasileiro logo na abertura do seu soneto, é o mesmo que rouba a luz entre os vitrais dessas “catedrais” para se refazer, em vidro e cores, no verso que fecha ruidosamente o poema do lusitano. “Esta velha angústia,/ Esta angústia que trago há séculos em mim” pode, sim, transbordar a vasilha e até quebrar “a imagem dos meus próprios sonhos”, enquanto estala ao verso final do outro, nas batidas uníssonas dentro do peito de dois grandes poetas, ecoadas nas vozes não menores dos atores Othon Bastos e Paulo Autran (1922/2007):
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos …
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Esta velha angústia
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!