“Nós contra eles” contra quem?

O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), sem sua inabilitação política, foi golpe? De quem? Em visões opostas, mas complementares no uso da História, deram suas análises os jornalistas Ricardo André Vasconcelos e Mary Zaidan.

A primeira, após longo silêncio, traz faca entredentes no “nós contra eles”. A segunda é sutil ao revelar contra quem.

Aqui e aqui, confira ambas nas transcrições abaixo:

 

 

Ricardo André Vasconcelos, jornalista
Ricardo André Vasconcelos, jornalista

Cunhas, Aécios e Temers: A lata de lixo da história vos espera

Por Ricardo André Vasconcelos

 

Em primeiro de abril de 1964, a auréola do poder que se prometia eterno ornava as cabeças dos civis e militares que derrubaram o presidente João Goulart. Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e a maioria das empresas de mídia se uniram aos militares para interromper, por duas décadas, as reformas de base que o então Brasil entre agrário e industrial exigia.  Atrasaram o país em pelo menos 50 anos. Dez anos antes, haviam tentado o mesmo levando ao suicídio o presidente Getúlio Vargas, a um ano e quatro meses do fim de seu mandato conquistado nas urnas.

O golpe parlamentar, perpetrado hoje em Brasília, não é pois novidade e muito menos original. “Ódio velho não cansa”, ensina o sempre saudoso Adão Pereira Nunes. Mesmo que Vargas, Goulart e Dilma tenham cometidos seus pecados, o que justifica a interrupção de seus mandatos não são esses pecados, e sim a absoluta incapacidade das elites brasileiras de se contentar com muito que lhe dão. Elas querem tudo.

Vargas foi chamado de “pai dos pobres e mãe dos ricos”, Jango talvez tenha sido o que menos tenha agradado aos poderosos;  e Dilma, como Lula, encheu até não mais poder as burras dos banqueiros e congêneres. Então, por que as elites — termo para o qual torcem o nariz os genuínos integrantes e os aspirantes a elas — teriam conspirado contra um governo legítimo para instalar um bando de sanguessugas nos gabinetes do Planalto? Porque justamente mais o tudo não lhes bastam. Querem impedir qualquer possibilidade histórica de ascensão das classes estacionadas abaixo delas.

Financeira e ideologicamente falando, o Brasil entra hoje numa pauta político-econômica mais retrógrada do que tínhamos há 40, 50 anos, sem falar nos direitos sociais ameaçados de sumir pelo ralo e uma agenda conservadora-religiosa de provocar engulhos. As manchetes dos jornais desde o final de semana já adiantavam os programas “modernizantes” que privatizam hospitais, escolas e creches. Querem o que dá lucro e as despesas sociais que vão para iniciativa privada para que cobrem o quanto quiserem e, assim  alijar qualquer possibilidade de ascensão social das camadas mais pobres. Bye-bye classe média.

Quem viver verá o retrocesso. Mas como a história é caprichosa e cíclica, verá também que ela reserva para a sua fétida lata de lixo, personagens como Cunhas, Aécios e Temers que,  por má-fé política ou pura ambição financeira, participaram do ardil que culminou com o impeachment da agora ex-presidente Dilma Rousseff. Mas não estarão sozinhos, porque dividirão a lata de lixo da história com gente como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda, Costa e Silva, cuja mão assinou o Ato Institucional nº 5, e toda a sórdida gente que há cinco séculos teima em impedir a emancipação do povo brasileiro.

Bom apetite para vocês e paciência para nós.

 

 

Mary Zaidan, jornalista
Mary Zaidan, jornalista

Foi golpe

Por Mary Zaidan

 

Cassada por 61 dos senadores, sete a mais do que Constituição determina, Dilma Rousseff não preside mais o Brasil. Tudo dentro dos conformes. Ou nem tanto. Por 36 votos foram mantidos os seus direitos políticos, possibilidade aberta por decisão mais do que polêmica do presidente da Suprema Corte, Ricardo Lewandowski. Algo digerível na política, acostumada a negociatas aqui e acolá, mas que causa espanto jurídico. E consequências nefastas.

Depois de ser elogiado nos meios jurídicos e políticos pela condução impecável da sessão do impeachment iniciada na quinta-feira, Lewandowski cedeu a um acordo bem tramado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e o PT. Turvou o processo que tão bem havia conduzido. E maculou a sua história.

De Lewandowski, e só dele, pode ser cobrada a estapafúrdia permissão de que fosse apreciada uma modificação na Constituição sem quórum qualificado, sem convocação para tal e em votação única.

Em sua defesa, nem mesmo poderá dizer que foi surpreendido pela questão de ordem feita pelo PT durante a sessão. A peça que preparou para autorizar o estupro à Constituição havia sido cuidadosamente elaborada. Tinha páginas e páginas, referências, citações. Uma indecência.

Com isso, pela primeira vez na História, um dispositivo constitucional foi alterado pelo voto de menos da metade dos senadores, abrindo-se precedentes perigosíssimos. Não só para futuras cassações — a bancada pró Eduardo Cunha que o diga —, mas também ao rito de alterações na Carta Magna, que exige aprovação em comissão especial e de dois terços da Câmara e do Senado em duas votações.

Na sessão do dia 31 de agosto, o Senado cassou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade. Constitucionalmente. E, irresponsavelmente, afrontou a lei maior do país com o aval e estímulo do presidente da mais alta Corte. Atentou contra a Constituição. Golpeou-a.

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Joaquim

    Oportuna e sóbria análise
    Parabéns.
    Além, restam as manifestações oportunistas e eleitoreiras.
    Bom dia.

  2. Marcelo

    Ao levar tanto tempo para escrever, fazendo isso só agora e dessa maneira, Ricardo revela que vinha esse tempo todo amargando em silêncio seu ressentimento. Mas choro de esguicho de carpideira não ressuscita defunfo.

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