“A literatura só terá sentido se mudar alguma coisa, nem que seja a minha própria vida”
(Ferreira Gullar)
Em férias para colocar corpo e leitura em dia, terminei o primeiro livro de 2017: “Ferreira Gullar — Autobiografia poética”. Presente do amigo e também poeta Adriano Moura, que recebeu em troca, numa dessas coincidências que não há, o “Toda Poesia” do mesmo Ferreira Gullar.
Mais do que narrar os fatos de uma vida física de 86 anos, da sua São Luís do Maranhão natal, ao Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1950 e viveu até morrer, há pouco mais de um mês, o livro conta Gullar através da evolução da sua poesia.
Do início de inspiração parnasiana, ao abandono da rima e da métrica, o poeta tomou a vanguarda do Modernismo brasileiro. Mergulhou de cabeça no experimentalismo, entre as décadas de 50 e 70 do século passado,“para chegar ao essencial: violentar a sintaxe, destruir o discurso e, com isso, revelar o que ele oculta…”
No namoro rompido ruidosamente com o Concretismo dos irmãos paulistas Haroldo (1929/2003) e Augusto de Campos, além de Decio Pignatari (1927/2012), para fundar o Neoconcretismo na reunião entre escritores e artistas plásticos cariocas ou, como Gullar, radicados no Rio, ficou a advertência aos poetas medíocres de ontem, hoje e sempre:
— E tentaram convencer as pessoas de que a má qualidade de seus poemas e suas obras não era defeito, mas uma qualidade ainda desconhecida. Ou seja, tentaram transformar sua mediocridade em virtude e reduzir a poesia.
Para quem acha possível ser poeta sem domínio técnico, nem que seja para se libertar (por opção, não limitação) dessa mesma técnica, na confusão rasa que muita gente faz da poesia com confessionário de padre ou divã de psiquiatra, vale outro conselho de Gullar:
— Assim me dei conta de que fazer má poesia não servia para nada. Ao escrever um poema, a preocupação principal tem que ser com a qualidade literária, poética.
Além da autobiografia, o livro é composto por duas entrevistas do poeta: uma de 1965, outra de 2014. A primeira revela a origem no filósofo grego Platão (427/387 a.C.) e no escritor francês André Gide (1869/1951), respectivamente, de duas das referências bem conhecidas de Gullar: o “espanto” que dizia movê-lo a escrever, além da sua sentença mais célebre: “A arte existe porque a vida não basta”.
P – O que acha da inspiração e por que escreve poesia?
R – Considero respondidas essas perguntas. O que se chamou de inspiração é o “espanto”, a que se refere Platão como fonte do conhecimento: a ruptura do mundo conceituado pela experiência nova. Por que escrevo poesia? Cito Gide: “a arte começa quando viver já não é suficiente para exprimir a vida”.
Na segunda e mais recente entrevista, ao falar dos seus tempos de militância comunista e exílio durante a Ditadura Militar (1964/85), Gullar revelou a pitoresca e “darcyniana” origem do ensaio que, particularmente, sempre considerei sua mais brilhante obra como teórico da literatura: sobre o poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884/1914), a quem Gullar considerou precursor do Modernismo na poesia brasileira.
P – Quanto tempo ficou em Moscou?
R – Fiquei lá cerca de dois anos. Depois, queriam que eu fosse para Paris, mas falei que queria ir para a América Latina, para perto de casa. Fui para o Chile, era o governo do Salvador Allende (1908/73). Mas logo Allende foi derrubado, e quase fui preso. Consegui me safar e fui para Lima, Peru, onde estava o Darcy Ribeiro (1922/97). Ficamos amigos, eu frequentava a casa dele e conversávamos de tudo, inclusive de poesia. Ele gostava de declamar poemas que sabia de cor. Observei que nunca declamava Augusto dos Anjos e quis saber a razão. Ele falou que tinha horror, isso de “escarra nessa boca que te beija”. Eu falei que era preconceito, porque o poema era mais complexo que isso. E comecei a dizer um soneto do Augusto dos Anjos que era diferente. Quando Darcy ouviu aquilo, ficou perplexo. “É um grande poeta”, concordou. Daí a um mês, chegou o Fernando Gasparian (1930/2006), dono da editora Paz e Terra, e nos convidou para almoçar. Durante o almoço, Darcy falou que eu estava escrevendo um livro sobre Augusto dos Anjos e que era para o Gasparian editar. E mais: “Vai logo adiantando quinhentos dólares para ele…”. Falei depois com o Darcy: “Você é louco? Como vou fazer? Não tenho nenhum livro do Augusto dos Anjos aqui comigo”. E ele: “Você se vira aí, se não escrever, também está tudo bem”. Mas eu não iria receber e não fazer o livro. Eu sabia muitos dos poemas de cor, conhecia a história dele, então fui para a Biblioteca de Lima e comecei a tomar notas. Lá não tinha livro do Augusto dos Anjos, mas tinha alguns filósofos que ele citava, como Schopenhauer (1788/1860). Fui lendo essas coisas, e, depois, quando já estava em Buenos Aires, a Thereza me levou outros livros que pedi e acabei de escrever o ensaio, que a Paz e Terra publicou, e a José Olympio reeditou recentemente [Toda poesia de Augusto dos Anjos].
Ainda que sem alcançar o mesmo brilho daquele estudo sobre Augusto dos Anjos, a “Autobiografia poética” de Gullar traz mais três ensaios do poeta, dedicados a uma trinca dos seus camaradas em armas: o francês Arthur Rimbaud (1854/91), o português Fernando Pessoa (1888/1935) e o peruano César Vallejo (1892/1938).
Gullar não acrescentou muito sobre o que eu já sabia sobre Rimbaud e Pessoa. Mas, no ensaio derradeiro, que fecha o livro, me apresentou a um poeta que ele considera precursor do Modernismo na América Latina e do qual, confesso, sequer ouvira falar. Lacuna que pretendo preencher com os versos de el cholo Vallejo ainda nestas férias.