
Desenhos, pinturas e esculturas retratando a nudez são ambíguos na concepção judaico-cristã-muçulmana. Nas culturas de matriz judaica, sobretudo na cristã, o corpo humano desnudo é entendido como sagrado ou como pecaminoso. Normalmente, Jesus crucificado aparece com um exíguo pano sobre a genitália. Visto assim, a nudez é sagrada. Por outro ângulo, a nudez é erótica e pornográfica. No chamado mundo pagão, nem a nudez nem a sexualidade eram vistas como pornográficas. A noção de nudez e de pecado nasceu no mundo monoteísta. Mais precisamente no início da modernidade. Exatamente no momento em que os valores medievais começam a ser questionados
Ainda vivemos essa ambiguidade. A prova mais cabal foram as recentes exposições “Queermuseum”, em Porto Alegre e a performance “La bete” no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Elas levantaram polêmicas sobre liberdade de expressão e censura. Mas não apenas a imagem pode provocar celeumas. Também a literatura e a música podem gerar discussões. Examinemos alguns casos.

Pietro Aretino inaugurava a pornografia literária, um gênero que ganhará o ocidente e o mundo nos subterrâneos e na clandestinidade. O curioso é que a pornografia de hoje é o cult de amanhã. Vejamos, no Brasil, o caso de Carlos Zéfiro, proibido no passado e cultuado hoje.

Terceiro caso: “A origem do mundo”. No século XIX, Gustave Courbet pintou “A origem do mundo”, quadro retratando uma mulher nua da qual não aparece a cabeça. Merecem destaque apenas o seio direito e uma acintosa vagina. Certa vez, numa palestra sobre ética e estética, em Vitória (ES), estampei esse quadro para um numeroso público. O silêncio foi profundo. Não fui abertamente criticado, mas a imagem calou fundo nos presentes. Ainda hoje, ele causa mal-estar, mas está absorvido pela opinião pública.
Quarto caso: “Sagração da primavera”. Não se pode considerar uma composição musical como pornográfica, a não ser se acompanhada de letra, libreto ou algo que envolva palavras. Mas ela pode causar repulsa no público. Foi o que aconteceu 1913, na estreia de “Sagração da primavera”, bailado de Stravinsky. A música foi vaiada e repudiada, inclusive por compositores consagrados. Hoje, “Sagração” é considerada a fundadora da música moderna do século XX. Stravinsky passou à condição de gênio. Ele é talvez o maior compositor contemporâneo, ainda não igualado.

Quinto caso: Em 1917, Marcel Duchamp colocou a concepção de arte em cheque com “A fonte”. A obra nada mais que é um urinol de banheiro público, sem nenhum trabalho do autor. Ele criou o conceito de arte pronta. Não é preciso mais o trabalho de criação do artista. Basta apenas que ele reconheça em alguma peça do cotidiano um valor estético. Numa exposição coletiva, deparei, certa vez, com uma lata de banha. Aproximei-me dela julgando que fosse uma lixeira. A seu lado, havia um título. Tratava-se de uma obra de arte.
Até hoje, Duchamp causa celeuma. Umberto Eco inseriu “A fonte” em seus livros “História da beleza” e “História da feiura”, ambos publicados pela Record. Por sua vez, Affonso Romano de Sant’Anna entende que a arte começou a se perder com Duchamp, pois tudo pode ser arte. Portanto, nada é mais arte. “A fonte” e outros exemplos de arte pronta não causam polêmicas de ordem moral, mas sim de ordem estética.

Sétimo caso: Jeff Koons. Em 1991, o artista norte-americano Jeff Koons casou-se com a estrela pornô italiana Ilona Staller (La Cicciolina) e com ela produziu uma série de fotos retratando sexo vaginal, oral e anal. A exposição das fotos causou escândalo e polêmica. A linha divisória entre arte e pornografia ficou tênue. Pelo conjunto da obra, Koons não pode ser considerado um destacado artista. Assim, a dúvida entre suas qualidades e a apelação para sua pessoa permanece.

Conclusão: as polêmicas em torno da arte são frequentes desde o renascimento. Na antiguidade não se tem notícia delas. Há o caso de Platão, que se situa mais no plano filosófico. Ele considerava tudo que existia na Terra como cópias de modelos ideais no mundo das ideias. Assim, retratar uma pessoa, um animal ou uma planta se tratava de uma cópia da cópia. Isso não interferiu na criação artística.
O fundamento das polêmicas é estético ou moral. Conservadores e progressistas vaiam de acordo com suas posições políticas. Caetano e Gil foram vaiados pela esquerda durante a Tropicália. Uma obra ou um movimento são criticados seja pela concepção estética, seja por se utilizar de imagens religiosas ou da sexualidade humana. O escândalo que uma obra causa não garante a qualidade estética dela. Esse o caso de Aretino e Koons, por exemplo. Muito barulho por nada. Por outro lado, Courbet, Stravinsky, Villa-Lobos e Mário, de Andrade sofreram severas críticas do público e se consagraram como artistas. A liberdade de expressão dos artistas e do público está assegurada no mundo ocidental. Creio que a prudência, contudo, recomenda que exista classificação de exposições por faixa etária. Elas também devem ser promovidas por instituições públicas. É o que está acontecendo com a exposição “Histórias da Sexualidade”, no Museu de Arte de São Paulo, proibida para menores de 18 anos. Assim, evita-se que uma criança toque no pênis de um homem nu em vez de no seu pé. Evita-se também que uma instituição privada sofra pressão de seus clientes e suspenda exposições. Mas, convenhamos, não deveria haver proibição e sim recomendação. Da mesma forma, a idade poderia ser reduzida para 16 anos. Com essa idade, moça ou rapaz já sabe de tudo nos dias de hoje.

Publicado hoje (27) na Folha da Manhã
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