O Brasil acordou feliz na segunda (6) com a notícia da vitória de Fernanda Torres ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática. Em meio a grandes atrizes de Hollywood como as britânicas Kate Winslet e Tilda Swinton, ou a estadunidense Angelina Jolie, todas de língua inglesa, ela levou falando português. Como tinha levado a Palma de Ouro de melhor atriz no Frestival de Cannes, com apenas 20 anos, por sua atuação em “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986), de Arnaldo Jabor.
Em 2024, na pele de Eunice Paiva, contida, sem exageros, como era personagem da vida real, Fernanda encarnou a viúva do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva. Que foi levado de casa por agentes armados do Estado para ser covardemente torturado e assassinado em 1971. E ter seu corpo, até hoje, desaparecido pela ditadura militar (1964/1985) que parte relevante dos brasileiros dos anos 2020 diz querer de volta.
Se o filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles e baseado no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, não levou o prêmio de melhor filme de língua não inglesa na madrugada de segunda, o Globo de Ouro de Fernanda lavou a alma do país. De uma maneira que só a arte e o esporte são capazes de fazer. E, de quebra, no sucesso de público e crítica nacional e internacional do filme, ajuda a passar a História do Brasil a limpo.
A vitória de Fernandinha foi também uma “revanche” do Globo de Ouro que sua mãe, Fernanda Montenegro, concorreu na mesma categoria em 1999, por “Central do Brasil”, outro filme de Walter. Mas acabou perdendo para outra craque, a australiana Cate Blanchet. Ambas perderiam depois o Oscar para a nada mais que correta estadunidense Gwyneth Paltrow, no auge do poder de lobby da então toda poderosa produtora Miramax.
Agora, um quartel de século depois, Fernandona teve o Globo de Ouro dedicado pela filha a ela. Parece até história de Hollywood. Mas é brasileiríssima! Tanto quanto Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Tom Jobim, Cartola, Elis Regina ou Clarice Lispector.
No próximo dia 17, saem as indicações ao Oscar. A vitória da atriz brasileira no Globo de Ouro não é garantia de nada. Mas certamente aumenta sua visibilidade. Como a necessidade dos membros da Academia do Oscar de assistir a “Ainda Estou Aqui”, que tem como produtora a campista Maria Carlota Fernandes Bruno, entrevistada pela Folha (confira aqui) em 30 de novembro.
Pelo que o filme e sua protagonista já fizeram até aqui, não há exagero em afirmar: a tricolor Fernanda Torres alcançou, no pódio das artes, altura semelhante à da ginasta do Flamengo Rebeca Andrade na história olímpica do Brasil.
Brasil em Hollywood por atriz e críticos de Campos
Com Éder Souza
“Esse prêmio reconhece a nível global a grande atriz Fernanda Torres, como a grandiosidade da arte brasileira. ‘Ainda Estou Aqui’ traz a memória de um tempo que não pode ser esquecido. Negar a existência dos anos de ditadura é perdurar comportamentos indignos de grupos que querem, a qualquer custo, manter seus privilégios e poder de opressão. O Brasil não ter julgado e condenado os responsáveis por anos de torturas físicas e psicológicas realça a certeza de impunidade”, cobrou a atriz campista Lúcia Talabi, a partir da vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro de melhor atriz, pelo desempenho no filme do diretor Walter Salles.
— ‘Ainda estou aqui’ é um filme que apresenta uma família de classe média alta carioca, tentando levar uma vida leve em paralelo com toda a questão da ditadura que assolava o país. O primeiro ato revela a natureza daquela família, principalmente na construção da figura de Rubens Paiva, o patriarca. É a partir de seu desaparecimento que a verdadeira protagonista assume as rédeas da família e da narrativa. Não é um longa sobre quem é levado, mas sobre quem fica — definiu o cineasta publicitário e crítico de cinema Felipe Fernandes.
— A força do filme reside na atuação de Fernanda Torres. Com um trabalho repleto de sutilezas, em que expressão facial e corporal revela mais que os diálogos, ela entrega um trabalho em diferentes camadas. Sua personagem precisa lidar com um turbilhão de sentimentos, escondendo alguns dos filhos. A atriz tem um desempenho inesquecível — disse Felipe sobre a atuação vencedora do Globo de Ouro de melhor atriz. E projetou as chances do filme e sua protagonista ao Oscar:
— O filme chega forte na briga por pelo menos duas indicações ao Oscar: filme internacional e atriz. Na primeira, o filme vem numa crescente, com forte campanha de marketing, essencial nessa corrida. A indicação de Fernanda Torres ganhou força com sua vitória no Globo de Ouro. Ainda que a premiação não seja um forte parâmetro para o Oscar, em uma temporada com grandes atuações femininas, sua vitória põe seu trabalho e todo o filme em evidência, podendo render à atriz uma indicação — apostou o cineasta e crítico.
— As pedras no sapato do filme brasileiro são a representante da França, “Emilia Pérez”, o vencedor do Prêmio do Júri e de melhor atriz em Cannes. E Demi Moore, que chega forte pelo aclamado “A Substância” (venceu o Globo de Ouro de melhor atriz na categoria comédia, distinção que não existe no Oscar). Uma das atrizes queridinhas de Hollywood, que nunca teve muito destaque, chega com uma grande atuação. É o tipo de história que a Academia adora — ressalvou Felipe.
— Fernanda Torres tem excelente atuação. Mas não apenas. Hoje, busco no cinema algo mais que roteiro e atuação. Roteiro tem ligação com literatura e atuação com o teatro. Quero algo relacionado ao que é próprio do cinema: a fotografia em movimento. O trabalho do Walter Salles com a câmara é também bom. Ele mostra uma fotografia oscilante na primeira parte, falando com imagens que o momento é de insegurança e medo. Na segunda parte, já passada a ditadura, a câmara se estabiliza — descreveu o historiador e escritor Arthur Soffiati, que assina como crítico de cinema com o pseudônimo Edgar Vianna de Andrade.
— Até aqui, o filme só venceu em roteiro, na Europa (com Murilo Hauser e Heitor Lorega, no Festival de Veneza), e atuação, nos Estados Unidos (Globo de Ouro). O prêmio europeu nos bastaria para consagrar o filme, mas precisamos do reconhecimento dos Estados Unidos. Não é, para mim, o reconhecimento principal, mas é para o Brasil. Concorrendo com atrizes que ganham bem e contam com respaldo da indústria, Fernanda mostrou que atuação existe também fora dos EUA. Aguardemos agora o Oscar — projetou Arthur/Edgar.
Confira o trailer do filme: