O que foi Mujica à esquerda da América do Sul e além dela

 

José Alberto “Pepe” Mujica (Foto: Pablo Porciuncula/AFP)

 

 

Mujica: “Maduro é ditador”

“Na Venezuela existe um governo autoritário e você pode chamá-lo (Nicolás Maduro) de ditador, chame-o do que quiser”. A frase não é de ninguém da direita. Mas de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai e, talvez, a liderança de esquerda mais admirada entre as que chegaram ao poder na América do Sul dos anos 2000. Que morreu ontem (13) de câncer, aos 89 anos.

 

Pós-Muro de Berlim

Pela idade, como pelo passado de ex-guerrilheiro do grupo marxista-leninista Tupamaros, antes e durante a ditadura civil-militar no Uruguai (1973/1985), quando chegou a levar seis tiros e ser preso por 14 anos, Mujica poderia ser considerado um velho radical de esquerda. Mas, no lugar de enviuvar com a queda do Muro de Berlim em 1989, se reciclou a partir dela.

 

Primeiras eleições

Liberto em 1985, Mujica se elegeu deputado em 1994, senador em 1999 e, pela formação campesina da sua família, foi ministro da Agricultura do governo Tabaré Vásquez. Que foi o primeiro presidente de esquerda do Uruguai. Como o primeiro a romper com o rodízio entre os partidos Colorado e Nacional (ou Blanco), que se revezavam no poder desde o séc. 19.

 

Esquerda sem tabus no poder

Mujica se candidatou a presidente do Uruguai em 2009, elegendo-se no 2º turno pela Frente Ampla, coalizão entre a centro-esquerda e esquerda. Seu governo priorizou os temas educação, energia, meio ambiente e segurança. Este, tabu para a esquerda pré-Muro de Berlim de boa parte da América do Sul, inclusive no Brasil.

 

Maconha, aborto e matrimônio homoafetivo

Na pauta de costumes, Mujica legalizou a maconha, o aborto, o matrimônio igualitário a casais homoafetivos e a adoção de crianças por eles. E teve importantes conquistas na economia, que reforçaram as de seu antecessor de esquerda: o desemprego caiu de 13% para 7% e a taxa de pobreza nacional, de 40% para 11%; enquanto o salário-mínimo do país cresceu 250%.

 

Cabo eleitoral de presidentes

Mujica deixou o poder em 2015, ajudou Tabaré a se eleger outra vez presidente e se elegeu mais duas vezes senador. Em 2024, descobriu o câncer no esôfago. O que não o impediu de ser naquele ano o grande cabo eleitoral de Yamandú Orsi, atual presidente do Uruguai. Que, após o governo Luis Alberto Lacalle Pou, de direita, levou a esquerda novamente ao poder no país.

 

Exemplo de vida

Famoso por guiar um Fusca azul mesmo quando era presidente, Mujica recebia pelo cargo 230 mil pesos mensais. Dos quais doava 70% à Frente Ampla e à construção de moradias. Ele mesmo morava numa chácara em Rincón del Cerro, zona rural de Montevidéu, onde cultivava flores e hortaliças. E se mantinha com o restante do seu salário.

 

Mais Boric que Lula

Comparado a Lula, Mujica mostrou menos personalismo e ambição por poder. Contentou-se em se eleger presidente uma única vez. E em ajudar a eleger ao cargo dois sucessores de esquerda. Contemporâneo do petista 10 anos mais novo, a intransigência democrática de Mujica o aproxima mais do presidente do Chile, Gabriel Boric, 50 anos mais jovem.

 

Irmão mais novo do Brasil

Por ter feito sido província do Reino de Portugal e depois do Brasil Império, entre 1817 e 1828, o Uruguai não deixa de ser um pequeno enclave brasileiro, que fala castelhano, na Bacia do rio da Prata. “O Brasil é nosso irmão mais velho”, dizia Mujica. De um irmão mais novo que deu certo, com um dos maiores PIBs per capita e índices de qualidade de vida da América do Sul.

 

Pequeno país, grande homem

“Quando você compra algo, não compra com dinheiro. Compra com o tempo de vida que teve que gastar para ter esse dinheiro. Mas com uma diferença: a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta”, vaticinou Mujica. Ainda que muita gente de esquerda, direita ou centro possa achar um sonho, o Uruguai produziu um grande homem que o viveu.

 

Pubicado hoje na Folha da Manhã.

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