José Luis Vianna da Cruz — Círculo vicioso no Alemão e Penha

 

No dia 29, na praça de São Lucas, na Penha, familiares choram sobre corpos dos mortos na operação policial do dia 28 nos complexos da Penha e Alemão contra a facção criminosa Comando Vermelho (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

 

 

José Luis Vianna da Cruz, sociólogo e professor da UFF-Campos

Um círculo vicioso — O caso do Alemão e da Penha

José Luis Vianna da Cruz

 

De início, já me posiciono afirmando que considero o que houve nos complexos do Alemão e da Penha um massacre, ou chacina. E, como foi em favela, sabemos que foi um massacre de jovens pobres negros, em sua maioria.

Por que um massacre, ou chacina?

Pelo número de pessoas mortas, alguma com tiros na nuca, outras desarmadas, outras à queima-roupa, outras em situação nada identificadas com qualquer suspeição, como um morador de rua e uma mulher numa academia.

Porque tanto o número de pessoas mortas quanto suas identidades não correspondem ao número de mandatos nem aos nomes procurados. Mais mortos do que o número de procurados, numerosas identidades diferentes das que constam nos mandatos.

Porque mandatos de detenção e apreensão não são salvo-condutos para matar; pelo contrário, o protocolo é de detenção sem letalidade, a não ser sob ataque. O que não foi o caso de grande parte dos corpos encontrados, claramente em situação de fuga sem armamento ou resistência.

Também não há norma, protocolo ou legislação que autorize a destruição dos bens existentes nas residências invadidas. Como todos sabemos a polícia quebra tudo do pouco que a gente pobre possui em casa. E usa de violência contra todos que encontra pela frente.

Não bastasse isso, precisamos recordar e reforçar certos princípios éticos, legais e de legitimidade. A velha prática da polícia do Rio de matar suspeitos não encontra respaldo legal, nem ético, nem legítimo. Suspeito não é condenado; nem um condenado pode ser fuzilado, porque a lei prevê penas. Portanto, em princípio e por todas essas razões, matar é imoral, ilegal e antiético.

Mas, dizem: houve reação bélica intensa por parte dos criminosos! Pois bem, a uma ação corresponde uma reação. A ação foi realizada por 2.500 homens armados até os dentes, invadindo as favelas com armamento pesado e com histórico de matar quem encontra pela frente, esteja armado ou não. Portanto, a dos criminosos foi uma reação a uma ação de prática típica e sistemática de assassinato indiscriminado por parte da polícia. Entregar-se nunca foi garantia de vida para suspeitos ou culpados. Os familiares dos mortos foram humilhados, tratados com agressividade, sem nenhuma compaixão, empatia ou solidariedade das autoridades, que só se pronunciaram dessa forma com relação aos policiais mortos, ignorando a dor dos familiares dos demais 120 assassinados.

Tem algo muito grave nesses fatos, que deveria ser constituir os principais temas de discussão sobre essa chacina. Para além do fato de que a maioria das pessoas entrevistadas por mais de um instituto de pesquisa terem aprovado o ocorrido.

Ações contra criminosos em localidades onde a maioria é de trabalhadores, famílias e pessoas honestas, não pode ser de varejo, impedindo a livre circulação, o acesso ao trabalho, à educação ou a qualquer atividade do cotidiano dos moradores e das atividades econômicas locais e ameaçando suas vidas. A prática de ações armadas, belicosas e letais nas condições praticadas pela polícia do Rio é incompatível com o direito à vida, com os direitos humanos, com a democracia, com o direito à sociabilidade em clima de paz, harmonia, convivência, solidariedade, alegria, usufruto, lazer.

As forças e autoridades de Segurança Pública são as principais responsáveis pelo clima de terror e medo que impera nessas áreas. Os criminosos mantem controle e um clima de medo e terror nessas comunidades? Até certo ponto, sim. Mas, o que fazer, então? Isto basta para justificar essa forma de enfrentamento do problema do tráfico de drogas?

Aí é que fica escancarada a hipocrisia, o cinismo, a má fé, a crueldade e a desumanização que permeiam as posições a favor da ação policial de boa parte das autoridades do Executivo, do Legislativo e, até mesmo, do Judiciário. Há quase um século que já se sabe, no mundo inteiro, que só se acaba com o crime organizado, com milícias, máfias, facções e afins quando se adota o “follow the money” (“siga o dinheiro”). Ou seja, quando se asfixia financeiramente as organizações e grupos criminosos.

Lembremo-nos de Al Capone, que só foi barrado quando investigaram seu imposto de renda. As ações da Polícia Federal estão revelando que empresas das finanças, do comércio, dos serviços e da indústria estão imiscuídas na circulação e lavagem do dinheiro que sustenta as máquinas do crime organizado.

Em suma, não há um só caso registrado no mundo em que a ação exclusiva e principal na ponta do varejo, contra os peixes pequenos, tenha acabado com as atividades desses grupos. Podem matar 100 ou mil ou 10 mil. O dinheiro dos milionários donos dessas organizações, que vivem em condomínios de luxo, contratará novos exércitos, fabricará mais drogas, comercializará o suficiente para manter suas máquinas e o dinheiro lavado aplicado renderá muito além das perdas. E, sabe-se, também, que há autoridades e políticos envolvidos.

Dito tudo isso, como é possível apoiar essa “solução macabra e criminosa” das autoridades da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro?

Digo mais: se isso fosse apresentado à população, tenho absoluta certeza de que se inverteriam as respostas (confira aqui, aqui e aqui) às pesquisas. Por quê? Porque por trás da maioria dessas aprovações está uma crença, alimentada pelas autoridades e instituições, em geral, de que a postura da segurança do Rio é a única maneira de resolver o problema.  E, mais ainda, porque, como grande parte sabe que os grandes não serão pegos, só resta mesmo eliminar o varejo, para, pelo menos, mitigar a ação desses criminosos.

E, para terminar, vem a questão eleitoral: além desses agentes oficiais dessa postura criminosa existem os omissos, pragmáticos, resignados e aproveitadores que não tratam a questão da maneira que aqui abordei, embora saibam que eu tenho razão, para não arriscar o desempenho eleitoral de si e dos seus candidatos. Ao invés de esclarecer, aproveitam-se da obscuridade.

Esse é o círculo vicioso que alimenta essa prática equivocada e sabidamente ineficiente. Mas, como do outro lado, estão pobres, pretos, favelados, é só manter a postura de indiferença e opressão com que esses sempre foram tratados, não só na questão da violência, uma vez que é só mais um ângulo da desigualdade e da violência social, étnico-racial, de gênero que os trabalhadores pobres, principalmente, sofrem desde sempre.

 

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