Saudade que pia e voa

Entre os anos 80 e 90, eram famosas as festas nos aniversários de Liana, na casa dos seus pais e avós, em Grussaí. Em setembro, velas enfunadas de vento sul, oposto ao nordeste dominante na maior parte do ano, a praia tinha pouca gente, o que a fazia mais nossa, naqueles churrascos regados a cerveja, fraternidade e violão.  

Depois que ela foi morar em Rio das Ostras e passou a moderar na bebida, assim como tantos de nós, ficaram as memórias mais dos bons momentos, do que das ressacas do dia seguinte. Não por outro motivo, volta e meia, quando passo por Grussaí, vindo de Campos, com destino a Atafona, cruzo por aquela rua ainda de terra, para rever a casa e reviver as lembranças.

Liana tinha um amigo mineiro, o Marcelo, que acabou se tornando também meu, muito embora não o veja desde seu casamento, em meados dos anos 90, na cidade de Turmalina, quase na fronteira das Minas Gerais com Bahia. A estrada Turmalina/Diamantina, serpenteando pelos imponentes cânions da Chapada batizada com o nome da segunda cidade, está entre as mais belas que já vi, ao lado daquela que liga Esparta a Olímpia, cruzando o Peloponeso de Leste a Oeste, na Grécia; de quase todas os caminhos das regiões rurais do Sul da Toscana, na Itália; e das Highlands, no Norte da Escócia. Mas essas são outras estórias…

O fato é que Marcelo, além de costumar aparecer nos aniversários de Liana, tinha o hábito de trazer alguns amigos da sua Belo Horizonte. Dessa vez, ele levara um sujeito pequeno e falante, cujo nome perdi na memória, e umas duas ou três meninas, cujas graças também se apagaram da lembrança. Saímos todos da casa de Liana, já tarde da noite, e fomos à casa do Marcelo, ali por perto, também em Grussaí, onde continuamos a beber as cervejas que havíamos “roubado” da festa.

O papo, a música e os flertes com as meninas se estenderam por toda a madrugada, até que, em dado momento, naquela ausência de motivo típica dos bêbados, levantei-me do chão da sala, atravessei a cozinha, peguei mais uma cerveja na geladeira e saí pela porta que dava ao quintal dos fundos, divisando sobre o muro aquele horizonte com cheiro de maresia que já anunciava a aurora nos “dedos róseos” de Homero. Sem que tivesse visto, Marcelo me seguiu. Apoiados no muro do quintal, passamos a dividir a cerveja e um cigarro, enquanto engatávamos num daqueles papos inteligentíssimos dos quais nunca ninguém se lembra. 

Distante do som da sala, pude distinguir, sobre a voz de Marcelo, os assobios das marrecas irerê, que voavam acima de nós. Mesmo que não pudesse vê-las na imensidão ainda escura do céu, impossível não reconhecer aquele típico piado:  fi-fi-fiu/fi-fi-fiu/fi-fi-fi-fi-fi-fi-fi-fiu…

Pedi a Marcelo que fizesse silêncio e passei a imitar o assobio, gerando um diálogo com as marrecas, com estas voando em torno da origem do som em terra, recurso geralmente utilizado por caçadores, já que elas tendem a encará-lo como convite de um semelhante para descer, provalmente numa lagoa ou outro olho d’água qualquer. A única coisa que cacei foi a atenção de Marcelo, em seu fascínio tipicamente urbano por aquele contato íntimo e inesperado com a natureza.

Após alguns minutos de assobios trocados entre mim e as marrecas, Marcelo entra de novo na casa e anuncia na sala, em alto e bom som, a grande novidade:  “Gente, Aluysio está falando com marrecas voando no céu. E o pior é que elas respondem”. A gargalhada geral como resposta se repetiu durante todo o dia seguinte, aliás o mesmo, interrompido apenas pelo necessário sono até o despertar e a ressaca, em parte aliviada pelo rememorar dessa e outras estórias igualmente divertidas.

Como o nome do amigo do Marcelo e das meninas que os acompanhavam, havia esquecido essa passagem até ver, na bela foto publicada no blog Imaginar (aqui), algumas irerê em pleno vôo, “caçadas” pela lente do Diomarcelo Pessanha. Segundo ele informou no post, o pássaro tão marcado pelas manchas brancas em contraste com bico, olhos e pescoço negros, como pelo som dos seus pios, é conhecido também por vários outros nomes.

Pois para mim, a partir da imagem do Dio e da lembrança revisitada daquele diálogo ébrio com a natureza, o nome certo é saudade.

 

Foto de Diomarcelo Pessanha, publicada no blog Imaginar, em 27/10/10
Foto de Diomarcelo Pessanha, publicada no blog Imaginar, em 27/10/10
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Este post tem 13 comentários

  1. Nino Bellieny

    Texto Bacana-Bacana. Prenúncio de um memorável livro de memórias…?

  2. Liana

    como vc disse ontem…um cheiro…uma música…uma foto…é o suficiente para despertar na memória momentos que até então não nos recordavamos mais…que bom que eles existem para lembrarmos e sentirmos aquela saudade gostosa…

  3. zeze pessanha

    Penso, que o DIO, longe de IMAGINAR que iria postar uma FOTO, que além de focar a PUREZA da NATUREZA AMBIENTAL, iria também provocar à SENSIBILIDADE e a GRANDEZA de ESPÍRITO da NATUREZA HUMANA. “ATIROU” no que viu, ACERTOU no que não viu. Rssrs. Contudo,inspirou o BLOGUEIRO ,reviver e nos contar essa GRANDE SAUDADE em sua VIDA. Na ocasião, mesmo movido à ÁGUA que PÁSSARO não BEBE, rsrsss,foi CAPAZ, de não perder a PERCEPÇÃO do BELO NATURAL e DIALOGAR com as MARREQUINHAS. FIU FIU pra lá, FIU FIU pra cá. BONITA E ROMÂNTICA, sua ESTÓRIA!!!PARABÉNS!

  4. Aluysio

    Caro Nino,

    Bacana-bacana é um pleonasmo, digamos, tão bacana-bacana quanto memorável livro de memórias… (rs)
    Não pensei num livro em prosa, até porque tenho um de poesia ainda aguardando publicação, mas apenas em dividir com vcs, leitores, uma passagem mais pessoal rememorada por outro blog, na tentativa talvez de tornar este um pouco mais leve e ligado à cultura, proposta inicial do Opiniões que foi sendo desviada pelas pedras no meio do caminho…

    Abraço e grato pela colaboração!

    Aluysio

  5. Aluysio

    Lili,

    Valeu, minha loura! No final, creia-me, tudo que ficam são as memórias. Que bom termos aquelas, dos seus aniversários em Grussaí, além de algumas outras igualmente comuns e positivas, para olharmos para trás e dizermos que valeu a pena.

    Bj e grato pela colaboração!

    Aluysio

  6. Aluysio

    Cara Zezé,

    Obrigado a vc, por sua sensibilidade, em relação uma crônica despretensiosa em dia de eleição, que não chamaria de GRANDE saudade, no sentido daquilo que escreveu outro mineiro, o Carlos que um anjo torto mandou ser gauche na vida, num poema apropriadamente intitulado “Memórias”:

    Amar o perdido
    deixa confundido
    este coração.

    Nada pode o olvido
    contra o sem sentido
    apelo do Não.

    As coisas tangíveis
    tornam-se insensíveis
    à palma da mão

    Mas as coisas findas
    muito mais que lindas,
    essas ficarão

    Abraço e grato pela colaboração!

    Aluysio

  7. Tânia

    Aluysio, eu sou uma daquelas meninas mineiras que acompanhavam o meu primo Marcelo naquelas paragens. Liana, que não vejo há tempos, assim como todo aquele pessoal de Campos, Léo, Vânia, Decinhho… foi quem me enviou este link que li com delicioso regozijo e lágrimas nos olhos. Obrigado por estas lembranças doces e pela certeza de que tudo valeu a pena…

  8. Aluysio

    Cara Tânia,

    Lembro-me de vc tanto num dos aniversários de Liana, em Grussaí, quanto no casório do Marcelo, em Turmalina. Essa estória da foto do Dio ter me lembrado da passagem das marrecas, cujo relato lembrou a Liana de dividir a crônica com vc, aí nas Minas Gerais, que agora me retorna para conectar novas lembranças, parece um pouco com aquela pena que voa e percorre todas as estórias do Forrest Gump, em meio à própria História dos EUA. Não que sejamos tão abobados quanto a personagem que deu o segundo Oscar ao Tom Hanks (pelo menos, gostaríamos de acreditar que não… rs), ou que nossas estórias tenham o mesmo relevo na História deste Brasil de montanhas e litorais. Mas por nossas, são realmente elas que nos fazem ter a certeza, olhando aqueles adolescentes e jovens que já não somos, de que tudo valeu a pena.

    Abraço e grato pela colaboração!

    Aluysio

  9. Nino Bellieny

    Caro Aluysio…

    Inspirei-me em uma dupla insertaneja: Meandro e Pleonasmo. Aguardaremos seu(s) livro(s).

  10. Luciana Portinho

    Caro Aluysio,

    Não conheço Tãnia, nem Marcelo, nem tampouco Lívia. Das Minas fiquei na geral…Nem sequer sabia que estas graciosas marrecas se chamam irerê.

    Valeu nos escrever estas linhas que piam casadas nesta imagem que voa. Perfeitas.

    um abraço,
    Luciana Portinho

  11. Vania

    Belo texto, belas recordações de um tempo ainda muito presente nas minhas melhores saudades…Como a gente se divertia com tudo e com nada!!!! Assim como você, quando vou à Atafona ainda passo por aquela rua, talvez na expectativa de “encontrar alguém na varanda”, ou quem sabe na tentativa de, num segundo de ilusão, reviver aquelas festas… reencontrar aquelas pessoas…tocar aquele violão!!!! Que sorte tivemos nós de termos vivido tanta coisa legal, cercados de tanta gente boa!!
    Valeu pelas lembranças!!! Você escreve lindamente!! Saudades!!
    Beijos
    Vania

  12. Aluysio

    Cara Luciana,

    Sua sensibilidade, externada também naquele belo texto de finados, sobre o cemitério de Cambuci, publicado em seu blog, permite que vc, de certo modo, conheça a nós todos a partir do texto, mesmo conhecendo pessoalmente apenas a mim.
    Só uma coisa: pelo menos desta crônica, a personagem é Liana, não Lívia… (rs)

    Abraço e grato pela colaboração!

    Aluysio

  13. Aluysio

    Vania Maria,

    Sim, quantas estórias naquela varanda, sob aquelas casuarinas que nem exitem mais, da fraternidade do sangue às cordas e vozes suas e do Léo, compondo a trilha sonora de nós todos.
    Ao fim e ao cabo, é como compôs o João de Barro:
    “A saudade mata a gente, morena
    A saudade é dor pungente, morena”

    Bj e grato pela colaboração!

    Aluysio

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