Ézio — O super-herói do meu irmão

Era 24 de agosto de 1994, seis dias antes do meu irmão caçula, Christiano, completar 21 anos. Como ele morava, estudava e trabalhava no Rio, eu estava por lá, mas não poderia ficar até seu aniversário, resolvi acompanhá-lo no Fluminense x Internacional, válido pelo Campeonato Brasileiro. O jogo seria disputado naquele mesmo dia, no estádio das Laranjeiras, cujo charme até então desconhecia pessoalmente.

Após um primeiro tempo sem gols, o placar foi aberto numa cobrança de falta, pelo meia colorado Daniel Frasson, aos 18 minutos da etapa final. A tristeza de Christiano e do resto da torcida tricolor apinhada no estádio não durou muito, pois um minuto depois, o meia Welton driblaria dois dentro da área do Inter, antes de chutar para empatar o placar.

Aos 34 minutos, lançado em contra ataque pela esquerda, o centro avante Ézio corre e, acompanhado pelo marcador, dá um único toque na bola, de canhota, na quina da área, para encobrir o goleiro Sérgio Guedes e, de virada, selar a vitória tricolor. Foi realmente um golaço, mas a cena que mais me impressionou não veio do campo, mas da sua reação imediata nas aquibancadas: Christiano desce seus degraus em desabalada corrida, salta como um felino sobre o alambrado, escala-o até à altura do peito, começa a balançá-lo vigorosamente com as duas mãos, enquanto, com as veias do pescoço saltadas, usa todo seu fôlego para libertar aquele brado do fundo da alma: “Super Ézio! Super Ézio! Super Ézio!”

Quem só conhecesse Christiano a partir dessa narração, teria a impressão de se tratar de indivíduo diametralmente oposto ao que de fato é: um sujeito pragmático, frio, pacato, educado, chato de tão racional — “um prussiano que por acaso nasceu no Brasil”, como costumo dizer. Suas exceções passionais, no entanto, não poderiam ser mais brasileiras, por reveladas quase unicamente em duas paixões confessas: futebol e carnaval.

Alguns anos depois daquele Flu 2 a 1 Inter, não me lembro se ainda nos fins da década de 90, ou no começo da seguinte, o fato é que Christiano já voltara a Campos e trabalhava na Folha, enquanto seu ídolo dos campos já havia se aposentado. Bate o telefone da minha sala e meu irmão diz que está indo até lá, me apresentar uma pessoa. Ele entra, seguido por alguém que levei alguns segundos para reconhecer, um pouco mais gordo e sem a capa de super-herói tricolor.

Ézio trabalhava como representante comercial de algum produto do qual havia identificado o jornal como potencial comprador. Não lembro bem, até porque a conversa que se seguiu, como não poderia deixar de ser, foi só sobre futebol. Recordo, porém, que a pergunta para mim mais instigante, cuja resposta me encheu de orgulho, partiu de Christiano.

Após Ézio revelar que havia jogado ao lado de Zico apenas em peladas de veteranos (o primeiro estreou no Flu em 1991, enquanto o segundo se despediu do Fla em 1989), meu irmão indagou:

— E ele foi mesmo isso tudo?

— Nunca joguei com alguém mais habilidoso, com tanta visão de jogo. Jogar na frente, com Zico lançando, mesmo numa pelada, é até complicado, pois muitas vezes ele mete a bola num lugar onde você não espera, que só vai ver que existia depois que a bola já passou — testemunhou Ézio, enquanto eu encarava Chistiano com aquele olhar de “não te disse?”.

Atacante de razoável habilidade e com faro de gol, Ézio nunca chegou a ser um craque. Foi, no entanto, um dos jogadores que vi mais identificados com a apaixonada torcida do Fluminense, figurando entre os maiores artilheiros da história do clube, sobretudo pelos 12 gols marcados contra o Flamengo, na disputa do clássico que, como sentenciou o tricolor Nelson Rodrigues, “nasceu 40 minutos antes do nada”.

Só hoje, dia seguinte à sua morte, por conta de um câncer no fígado e no pâncreas, lendo aqui o Ponto de Vista saudoso de Christiano, fui saber de outra mostra louvável do caráter de Ézio, endossada pela humildade e simplicidade que pude constatar naquela nossa conversa: ele chegou a assinar vários contratos em branco com o Fluminense, algo impensável no futebol mercantilista de hoje.

Quando um homem de bem se vai precocemente, com apenas 45 anos, diante de uma doença terrível, o lamento é sempre necessário. Para mim, é necessidade reforçada pela lembrança daquilo que, em vida, quando já não jogava, Ézio confirmou sobre Zico, meu maior ídolo no futebol. Sobretudo, lamento a morte de Ézio porque, quando ainda vivia, ainda jogava e, segundo alguns tricolores, até voava, aquele super-herói carregado de humanidade revelou, num Flu x Inter das Laranjeiras, a face mais próxima a mim do meu próprio irmão.

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Este post tem 5 comentários

  1. saulo

    Parabéns,Aluysio.
    Um belo texto. Aliás, você e o Christiano fizeram uma bela tabela na homenagem ao Super Ézio.
    Abs. Saulo

  2. Paulo Cassiano Júnior

    Parabéns pelo belo texto! Super-Ézio também foi meu herói de chuteiras na década de 90. Saudações tricolores. Estamos de luto.

  3. JORGE DIAS

    PARABENS PELA MATÉRIA. LINDA HOMENAGEM AQUELE QUE DIGNIFICOU E ENALTECEU AS CORES DO FLUMINENSE, CLUBE QUE ELE SOUBE HONRAR, RESPEITAR E SER PERPETUADO EM SUA MEMÓRIA.

  4. Aluysio

    Caros Saulo, Paulo Cassiano, Christiano e Jorge Dias,

    Grato a vcs pelas palavras.

    Saudações rubro-negras!

    Aluysio

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