OS GOVERNOS FEDERAL, PAULISTA, FLUMINENSE, MINEIRO, DOS MUNICÍPIOS ÀS MARGENS DA BACIA DO PARAÍBA DO SUL, BEM COMO AS PESSOAS QUE DEPENDEM DELE SÓ QUEREM SUGAR OS RIOS, SEM NENHUMA PREOCUPAÇÃO DE REVITALIZÁ-LOS. NO ARTIGO ABAIXO, PROCURO DESMISTIFICAR SÃO PAULO COMO BANDIDO E O RIO DE JANEIRO COMO MOCINHO. TODOS SÃO BANDIDOS.
Paraíba do Sul: o X da questão
Por Aristides Soffiati
Muito já se falou e se escreveu sobre a intenção do governo de São Paulo de transpor água da Bacia do Paraíba do Sul para o reservatório da Cantareira a fim de suprir as necessidades de abastecimento público da megalópole paulistana. A pretensão data de 2008, mas o governador Geraldo Alckmin escolheu um momento favorável para voltar ao assunto: a Região Sudeste do Brasil enfrenta uma longa estiagem, com temperaturas excessivamente altas e escassez histórica de chuvas. Assim, os níveis dos reservatórios e dos rios reduziram-se de forma extraordinária. Minha neta mais nova me consola quando colho sangue para exame: “não chora não, vovô, é só uma picadinha”. Alckmin considera apenas uma picadinha a tomada d’água na represa do Rio Jaguari, afluente do Paraíba do Sul, para lançá-la na Cantareira.
Logo políticos, cientistas e população se posicionaram. As opiniões foram as mais diversas e desencontradas. Era de se esperar que os políticos e a população de além Paraíba do Sul (e também de aquém, no trecho paulista) apoiassem Alckmin e que os políticos do Rio de Janeiro se manifestassem contrário a ele. Não apenas dos municípios ribeirinhos, mas da região metropolitana do Rio de Janeiro, que, embora não instalada às margens da Bacia do Paraíba do Sul, depende das águas dela, transpostas para o sistema Lajes-Guandu, com fins de abastecimento público. Quanto aos cientistas, esperava-se que eles fossem mais cautelosos em suas opiniões. No entanto, o que se viu foi a ciência sucumbir ao bairrismo. As informações básicas sobre a Bacia do Paraíba do Sul foram manipuladas. Nunca li tanta informação desencontrada sobre vazão e consequências da transposição para o sistema Cantareira.
Os fluminenses dizem que amam e defendem a Bacia do Paraíba do Sul. Que não permitirão a retirada de uma gota sequer de suas águas. Por sua vez, Alckmin contra-ataca dizendo que o Rio de Janeiro quer a bacia para geração de energia elétrica de forma insustentável, já que pode obtê-la de outras fontes. Sem nenhum conhecimento técnico e informação sólida, posiciono-me contra a transposição. Não posso demonstrar que ela causará danos à bacia, mas também não posso garantir o contrário. Por este motivo, defendo o princípio da precaução: na dúvida, não ultrapassar.
Por outro lado, não vejo amor pela bacia por parte dos ribeirinhos e do governo do Rio de Janeiro. Seu desejo inconfessável é ter o monopólio da destruição da bacia. A discussão sobre vazão e danos à bacia esconde exatamente o interesse em monopolizá-la para explorá-la. A intuição expressa por Gilberto Freyre no seu livro “Nordeste”, de 1937, se confirma: os ribeirinhos postavam-se de frente para os rios no século XIX; no século XX, voltaram as nádegas para eles. E tal atitude não se aplica apenas ao Rio Paraíba do Sul, mas a todos os rios do Brasil. Nem mesmo o Amazonas, que considerávamos inatingível por sua magnitude, está a salvo. Acontece o mesmo em todos os continentes. Basta mencionar os casos dos Rios Colorado, nos Estados Unidos, Jordão, Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, e Nilo, na África.
Tanto os Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais desejam exclusividade sobre o Paraíba do Sul para construir barragens, poluí-lo diariamente, permitir acidentes de grandes proporções em suas águas e captação. É correto que o governo do Rio de Janeiro repudie a intenção do governo de São Paulo de captar água na Bacia do Paraíba do Sul para atender às necessidades da grande São Paulo. Contudo, o governo fluminense transpõe grande quantidade de água para o Guandu, mais para diluir o esgoto e favorecer o tratamento d’água do que para abastecimento. Depois do último afluente do Paraíba do Sul, o INEA aprovou a captação de até 10 m3 por segundo para o complexo industrial portuário do Açu.
Após o primeiro grande acidente na Bacia do Paraíba do Sul, causado pelo vazamento de cádmio, zinco e chumbo pela empresa Paraibuna Metais, em 1982, o governo federal publicou o Decreto nº 87.561 (13/09/82) dispondo sobre a recuperação da bacia. Foi o mais completo plano de revitalização, mas nada saiu do papel. Em vez de só saquear a bacia, é preciso formular um plano atualizado de revitalização. Depois, discute-se se a bacia tem ou não condições de atender a tantas bocas sedentas. Entendo que a missão de impedir novas intervenções danosas e de cobrar a revitalização da bacia compete ao Ministério Público Federal.
Publicado hoje na edição impressa da Folha e aqui, na democracia irrefreável das redes sociais.