Nome destacado do alto modernismo dos EUA na poesia, Elizabeth Bishop (1911/79) ficou mais conhecida no Brasil que tanto conheceu ao ser interpretada pela atriz australiana Miranda Otto, no filme “Flores raras” (2013), do diretor brasileiro Bruno Barreto. Na vida real das décadas de 50 e 60 do século passado transposta à tela, a poeta estadunidense viveu nestas terras de Vera Cruz uma paixão fulminante (literalmente) por outra mulher, a arquiteta e paisagista autodidata Lota de Macedo Soares (1910/67), que por sua vez concebeu e construiu o Parque do Aterro do Flamengo para o então governador Carlos Lacerda (1914/77). No cinema, o papel de Lota coube a Glória Pires.
Sobretudo em seu início, Bishop foi discípula literária de Marianne Moore (1887/1972), principal poeta do modernismo dos EUA, ao lado de Erza Pound (1885/1972) e T.S. Eliot (1888/1965), além de maior influência assumida pelo pernambucano João Cabral de Nelo Neto (1920/99). Não por acaso, Cabral seria depois traduzido por Bishop ao inglês, além de ser, ao lado de Carlos Drummond de Andrade (1902/87) e Vinicius de Moraes (1913/80), um dos poucos poetas brasileiros que a estadunidense chegou a admirar em suas três décadas de convívio tupiniquim. Aliás, com Vinicius, após alguns encontros em Ouro Preto regados a whisky escocês e cachaça mineira, a convivência de Bishop, mesmo sendo lésbica, teria chegado à cama.
Após os anos iniciais de idílio no sítio de Lota em Samambaia, na região de Petrópolis, Bishop se mudou a contragosto para o Rio. Junto da companheira mergulhada no projeto do Parque do Aterro, a poeta passou a viver numa cobertura do Leme, na av. Atlântica. E foi de lá, em abril de 1963, que ela testemunhou um fato real que mobilizou a crônica policial de então: a tentativa de prisão e morte do bandido “Micuçu”, nome popular de uma cobra da região Norte do Brasil, cujo veneno é mortal. A saga dos morros cariocas foi retratada pela estrangeira numa balada aparentemente tradicional, onde as estrofes iniciais são repetidas ao final, naquilo que parece confirmar o senso comum politicamente correto: o crime é fruto da miséria, por sua vez semeada pelo êxodo rural com destino às grandes cidades.
Todavia, ao desconstruir a potencial saga épica numa tragicomédia lírica, onde os erros dos policiais e do bandido se atropelam, a ambiguidade moral dá o tom ao explorar justificativas menos “nobres” para uma vida de crimes, seja dada pela tia do bandido (“Eu criei ele direito,/ Com carinho, com amor./ Mas não sei, desde pequeno/ Micuçu nunca prestou”), ou por um anônimo frequentador de birosca no Morro da Babilônia: “Ele era um ladrão de merda./ Foi pego mais de seis vezes”.
Do alto daquele enclave natural entre Leme, Copacabana, Urca e Botafogo, o contraste entre o destino trágico do morro e o cotidiano dionisíaco da orla marinha, também está lá: “Ele via as praias brancas,/ Os banhistas bem dormidos,/ Com barracas e toalhas./ Mas ele era um foragido.”
A ambiguidade não se dá apenas na moral, mas na narrativa do poema, iniciada na segurança impessoal da terceira pessoa, mas depois assumida pelo próprio Micuçu, acentuando seu drama até o momento da sua morte. E isso em meio aos sons vivos de um Rio de Janeiro que não existe mais, preservados em eco no canto de Bishop: “Micuçu ouviu o pregão/ Do vendedor de barraca,/ E o homem do amendoim/ Rodando sua matraca”.
Tão lírica quanto o Chico Buarque de “O meu guri” e antes dele, a calvinista Elizabeth Bishop soube tratar o mesmo tema com sensibilidade semelhante, mas sem o maniqueísmo sociológico do compositor, para quem só a idealização da culpa católica parece ser explicação permitida. Ao fim e ao cabo, desde muito antes de 1963 e para muito ainda depois de nós, tudo que salta aos olhos estrangeiros e nativos nos morros cariocas talvez possa ser melhor resumido em sua expressão de crença descida em gravidade ao asfalto: “Fé em Deus e nas crianças da favela”.
Ou nos versos de Luís de Camões (1524/80) que abrem o livro “Questões de viagem”, dedicado a Lota e terceiro de Bishop, editado pela primeira vez em 1965, do qual o poema “O ladrão de Babilônia” faz parte: “…O dar-vos quanto tenho e quanto posso,/ Que quanto mais vos pago, mais vos devo”.
Abaixo, para saldar quaisquer dívidas neste domingo de sol, a música de Chico e o poema de Bishop, na tradução cuidadosa do também poeta Paulo Henriques Britto:
O ladrão da Babilônia
Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.
São milhares, são milhões,
São aves de arribação,
Que constroem ninhos frágeis
De madeira e papelão.
Parecem tão leves que um sopro
Os faria desabar
Porém grudam feito liquens
Sempre a se multiplicar,
Pois cada vez vem mais gente.
Tem o morro da Macumba,
Tem o morro da Galinha,
E o morro da Catacumba;
Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o do Noronha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.
Micuçu era ladrão,
Assassino, salafrário.
Tinha fugido três vezes
Da pior penitenciária.
Dizem que nunca estuprava,
Mas matou uns quatro ou mais.
Da última vez que escapou
Feriu dois policiais.
Disseram: “Ele vai atrás da tia,
Que criou o sem-vergonha.
Ela tem uma birosca
No morro da Babilônia”.
E foi mesmo lá na tia,
Beber e se despedir:
“Eu tenho que me mandar,
Os home tão vindo aí.
“Eu peguei noventa anos,
Nem quero viver tudo isso!
Só quero noventa minutos,
Uma cerveja e um chouriço.
“Brigado por tudo, tia,
A senhora foi muito legal.
Vou tentar fugir dos home,
Mas sei que eu vou me dar mal”.
Encontrou uma mulata
Logo na primeira esquina.
“Se tu contar que me viu
Tu vai morrer, viu, menina?”
Lá no alto tem caverna,
Tem esconderijo bom,
Tem um forte abandonado
Do tempo de Villegaignon.
Micuçu olhava o mar
E o céu, liso como um muro.
Viu um navio se afastando,
Virando um pontinho escuro,
Uma mosca na parede,
Até desaparecer
Por detrás do horizonte.
E pensou: “Eu vou morrer”.
Ouvia berro de cabra,
Ouvia choro de bebê,
Via pipa rabeando,
E pensava: “Eu vou morrer”.
Urubu voou bem baixo,
Micuçu gritou: “Péra aí”,
Acenando com o braço,
“Que eu ainda não morri!”
Veio helicóptero do Exército
Bem atrás do urubu.
Lá dentro ele viu dois homens
Que não viram Micuçu.
Logo depois começou
Uma barulheira medonha.
Eram os soldados subindo
O morro da Babilônia
Das janelas dos barracos,
As crianças espiavam.
Nas biroscas, os fregueses
Bebiam pinga e xingavam.
Mas os soldados tinham medo
Do terrível meliante.
Um deles, num acesso de pânico,
Metralhou o comandante.
Três dos tiros acertaram
Os outros tiraram fino.
O soldado ficou histérico:
Chorava feito um menino.
O oficial deu suas ordens,
Virou pro lado, suspirou,
Entregou a alma a Deus
E os filhos ao governador.
Buscaram depressa um padre,
Que lhe deu a extrema-unção.
— Ele era de Pernambuco,
O mais moço de onze irmãos.
Queriam parar a busca,
Mas o Exército não quis.
E os soldados continuaram
A procurar o infeliz.
Os ricos, nos apartamentos,
Sem a menor cerimônia,
Apontavam seus binóculos
Pro morro da Babilônia.
Depois, à noite no mato,
Micuçu ficou de vigília,
De ouvido atento, olhando
Pro farol lá longe, na ilha,
Que olhava pra ele também,
Depois dessa noite de insônia
Estava com frio e com fome,
No morro da Babilônia.
O sol nasceu amarelo,
Feio feito um ovo cru.
Aquele sol desgraçado
Era o fim de Micuçu.
Ele via as praias brancas,
Os banhistas bem dormidos,
Com barracas e toalhas.
Mas ele era um foragido.
A praia era um formigueiro:
Toda a areia fervilhava,
E as pessoas dentro d’água
Eram cocos que boiavam.
Micuçu ouviu o pregão
Do vendedor de barraca,
E o homem do amendoim
Rodando sua matraca.
Mulheres que iam à feira
Paravam um pouco na esquina
Pra conversar com as vizinhas,
E às vezes olhavam pra cima.
Os ricos, com seus binóculos,
Voltaram às janelas abertas.
Uns subiam nos telhados
Para assistir mais de perto.
Um soldado — ainda era cedo,
Oito horas, oito e dez —
Fez mira no Micuçu
E errou pela última vez.
Micuçu ouvia o soldado
Ofegando, esbaforido,
Tentou se embrenhar no mato:
Levou uma bala no ouvido.
Ouviu um bebê chorando
E sua vista escureceu.
Um vira-lata latiu.
Então Micuçu morreu.
Tinha um revólver Taurus
E mais as roupas do corpo,
Com dois contos no bolso.
Foi tudo que acharam com o morto.
A polícia e a população
Respiraram aliviadas.
Porém na birosca a tia
Chorava desesperada.
“Eu criei ele direito,
Com carinho, com amor.
Mas não sei, desde pequeno
Micuçu nunca prestou.
“Eu e a irmã dava dinheiro,
Nunca faltou nada, não.
Por que foi que esse menino
Cismou de virar ladrão?
“Eu criei ele direito,
Mesmo aqui, nessa favela”.
No balcão os homens bebiam,
Sérios, sem olhar pra ela.
Mas já fora da birosca
Comentou um dos fregueses:
“Ele era um ladrão de merda.
Foi pego mais de seis vezes”.
Hoje está chovendo fino
E estão de volta os soldados,
Com fuzis metralhadoras
E capacetes molhados.
Vieram dar mais uma batida,
Só que é outro criminoso.
Mas o pobre Micuçu —
Dizem — era mais perigoso.
Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.
Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o do Noronha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.
Nada como começar o domingo com seu brilhante texto, a poesia de Bishop e o som de Chico Buarque
As Domingueiras do Aluysio continuam trazendo o melhor das poesias e dos poetas.
Cara Emar,
Já terminando o domingo, devo concordar que ele ficou bem melhor com Bishop e Chico.
Abç e grato pela generosidade!
Aluysio
Caro Nino,
Domingueiras é um bom título. Lembra as “domingadas”, jogadas apelidadas pelo nome do craque Domingos da Guia, zagueiro brasileiro que nos anos 1930 e 1940 costumava sair jogando do seu campo de defesa, após roubar a bola dos atacantes e, não raro, humilhá-los com dribles.
Abç e bom resto de domingo!
Aluysio
Linda composição caro Aluysio!
Caro Ciranda,
Se consegui contextualizar alguma coisa, sem atrapalhar a beleza das composições de Bishop e Chico, ficou de bom tamanho. Mas agradeço, sinceramente, sua generosidade!
Abç e bom início de semana!
Aluysio
Sensibilidade pura, a flor da pele.
Cara Sandra,
Além da sensibilidade, o que me parece mais interessante na balada de Bishop é a visão de uma grande poeta estrangeira sobre a realidade tragicômica do Brasil, que mudou mt pouco ao longo dos anos.
Abç e grato pela chance do debate!
Aluysio