De onde viemos, jovens de um mesmo tempo, para além das casuarinas

Atafona, 1º de fevereiro de 2016 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
Atafona, 1º de fevereiro de 2016 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

 

Gustavo Ted (selfie de facebook)
Gustavo Ted (selfie de facebook)

Para além das casuarinas

 

Apesar da morte de Carlos Drummond de Andrade, 1987 foi um ano bom. No cinema, foram lançados os hoje clássicos “Coração satânico”, de Alan Parker; “Os intocáveis”, de Brian de Palma; “Au revoir, les enfant”, de Louis Malle; “Império do Sol”, de Steven Spielberg; “Esperança e glória”, de John Boorman; “Bom dia, Babilônia”, dos irmãos Taviani; “Badgad Café”, de Percy Adlon; “A era do rádio”, de Woody Allen; “Pelle, o conquistador”, de Billy August; “Asas do desejo”, de Wim Wenders; “Barfly — Condenados pelo vício”, de Barbet Schroeder; “O predador”, de John McTiernan; “RoboCop”, de Paul Verhoeven; As Bruxas de Eastwick”, de George Miller; “Feitiço da lua”, de Norman Jewison; “Abaixo de zero”, de Marek Kanievska; “Os garotos perdidos”, de Joel Schumacher; “Sem saída”, de Roger Donaldson; “Atração fatal”, de Adrian Lyne; “Wall Street”, de Oliver Stone; “Um trem para as estrelas”, de Cacá Diegues; “Ironweed”, de Hector Babenco; “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick; “O último imperador”, de Bernardo Bertolucci; além da estreia do mestre chinês Zhang Yimou, com “Sorgo vermelho”.

Se impressiona constatar em retrospectiva o que foi produzido no cinema de 29 anos atrás, o mercado fonográfico internacional também colheu boa safra. Além do lançamento dos discos “Bad”, de Michael Jackson, e de “The Joshua tree”, da banda irlandesa U2, na MPB tudo ia muito bem, obrigado, ao eco de “Passarim”, de Tom Jobim, e “Francisco”, de Chico Buarque. Sob a sombra dos mestres, o ritmo mais ouvido pelos jovens do país do samba era o BRock, cuja popularidade seria consolidada naquele ano com “D”, primeiro ao vivo do Paralamas do Sucesso, gravado no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça; além de “Vida bandida”, de Lobão, e, não fosse mais nada, “Que país é este”, do Legião Urbana.

Foi naquela efervescência contagiante de 1987, quando o brasileiro, acredite, olhava seu Congresso Nacional com esperança, pela nova Constituição que nele seria aprovada no ano seguinte, que conheci Luiz Gustavo Machado Siqueira, ou simplesmente “Ted”, como ele preferia ser chamado. Cerca de um ano e meio mais velho do que eu, estávamos ambos na festança do aniversário de 18 anos de Hervé Lysandro, no casarão em que este morava com sua família, na rua Conselheiro José Fernandes.

Num tempo em que o açúcar e o álcool eram os alicerces da economia de Campos, não os royalties do petróleo que seriam desperdiçados pelos Garotinho de 1989 até os dias de hoje, a família de Hervezinho, proprietária da extinta usina Cambaíba, não poupou despesas naquele domingo de sol de 16 de agosto de 1987. Embora raro se servisse chope nas casas noturnas da cidade, foram 400 litros da bebida, sem contar algumas caixas de whisky Balantines, consumidos pelos cerca de 300 convidados, a maioria jovens como Hervé, Ted e eu.

Além do BRock rolando nos antigos vinis e fitas cassete, duas bandas locais ecoaram o ritmo ao vivo na festa: a Vida de Cão e a Calibre 45. No ecumenismo de corpo presente, também fez seu som a rapaziada do pagode levada pelo Jô, porteiro da saudosa escola PA, na rua Voluntários da Pátria.

Dos colunistas sociais dedicados ao público jovem de Campos, todos estavam lá: o Fernandinho Gomes, o Carlos Damasceno e o José Carlos Pereira Campos, o Caquinho, a quem também fui conhecer naquela festa. Fernandinho sempre escreveu na Folha, enquanto os outros dois o faziam, respectivamente, em A Cidade e A Notícia. Hoje, estes dois jornais são extintos e os três jornalistas, falecidos.

No final da festa, sob efeito da fartura de chope e hormônios, houve um estranhamento entre Ted e Marcelo Colla, outro jovem de então. Eu fui um dos que ajudou a separar o princípio de confusão, passando depois a beber com Ted, para tentar acalmá-lo, tarefa não muito difícil, dado seu temperamento brando. Depois, no clima de companheirismo que deu o tom daquele aniversário e daqueles anos, o próprio Marcelo se chegou, passando a beber conosco.

Nestas quase três décadas de lá para cá, nunca excedi muito a intimidade desse primeiro contato com Ted. Mas, quase sempre que nos encontrávamos, o repetíamos despretensiosamente, conferindo-lhe a antiguidade de uma tradição particular, ao jogar conversa fora, de preferência bebendo um chope, como se ainda fossemos aqueles jovens de outro tempo.

Ser avisado no final da manhã de ontem  (14/02), em Campos, pelo meu irmão em Florianópolis, da morte de Ted no início do mesmo dia, em Atafona, além de evidenciar como mudaram os tempos, mexeu com coisas que nem lembrava mais, mas estavam por aqui, guardadas em algum lugar. Tanto pior que sua morte, num aparente suicídio violento, se deu entre as mesmas casuarinas, diante às mesmas dunas e ao mesmo Atlântico que compuseram o cenário dos nossos últimos encontros, no bar Não Me Viu, do Ronaldo Cravo, bravo sobrevivente do mítico Pontal dos anos 1970.

De onde viemos, jovens de um mesmo tempo, àquilo que há para além das casuarinas e do oceano, que Ted possa encontrar a paz.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã

 

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Este post tem 6 comentários

  1. Savio

    Custo a acreditar que este jovem tenha mesmo cometido suicídio e desta forma tão violenta! __Sem deixar um bilhete? Só procurando saber com os familiares e pessoas próximas, como estava o comportamento dele nestes últimos tempos!

    __De qualquer modo, é lastimável, uma pessoa ainda tão jovem ter um fim tão drástico, é difícil aceitar.

  2. milena

    Existem fatos que não cabem explicação. Ontem, para além das casuarinas jovens de setenta e vinte anos viram suas vidas naquela praia passar como um filme em suas cabeças. Não um clássico ocidental, mas um clássico que tem coadjuvantes que vemos durante todo ano e confraternizamos no verão.
    Quantas dores vivemos? Quantos rasgos e remendos tem nossa alma? Quanto tivemos que suportar para chegarmos a mais um verão? O sofrimento mental não é algo mensurável. É singular! Só o sofredor sabe quando a corda está sufocando. Quando respirar é impossível. Onde o amor da família, da mulher e dos amigos não ameniza a angústia e o desejo dela findar-se.
    Gustavão, assim minha família aprendeu a chamá-lo, nos levou a refletir. Espero que nos leve a olhar com mais generosidade as dores da alma.

  3. Ronaldo coelho

    Muito triste!

  4. Sandra Machado

    Trágico,extremamente….

  5. fabiano

    tem facebook o gustavo ?

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