Fabio Botrrel — O Balé Inconsciente do Consciente

 

Sugestão para escutar enquanto lê: On The NatureofDaylight – Max Richter

Balé de David Dawson

 

 

 

Bottrel 02-06-16

 

 

— Uma palavra escrita com sangue d’alma preenche a vida sem fin-à-idade, sai do corpo como sai a semente da terra, jamais aceitaria ser costela da letra o.

Arte.

Com essa palavra gostaria de começar essa palestra. — Bruno pigarreou baixinho virando um pouco o rosto longe do microfone. Tentava se orientar com alguns tópicos escritos nas folhas à sua frente, mas não as levantava da mesa com receio de perceberem suas mãos tremulando a ponto de fazer aqueles barulhinhos que os papéis fazem quando encontram mãos nervosas. Encostou os dedos frios na testa e percebeu ligeiramente úmida mesmo com o grande ar condicionado do auditório no Museu Histórico de Campos dos Goytacazes. Atrás de si estava o estandarte da Academia Pedralva de Letras e Artes ao lado do convite que aceitara — 80 anos do filme Tempos Modernos de Charlie Chaplin.

Voltou a olhar para a plateia, confuso, aparentava conhecer todos os presentes, mas não lembrava de nenhum e um sentimento de angústia lhe preencheu o corpo, como quando tinha o nome de uma pessoa na ponta da língua e sentia embaraço de tê-lo esquecido. Reconheceu nos rostos suas próprias expressões, uns estavam sorrindo enquanto ele não proferia as próximas palavras, outros com traços contorcidos de uma vida pesada, alguns com a postura ereta como um campeão arredio, outros com a postura dobrada como um cão vadio. Bruno abriu a boca fosca de ar frio, seus dentes colavam na parte interior dos lábios secos d’um nervoso bravio, d’um, d’um, d’um, sentia o coração, d’um, d’um, d’um, meu deus que provação!

– Entre os convidados estava JaschaHeifetz, o célebre violinista. Todos insistiam em que Heifetz se apresentasse; ele pegou o violino de Chaplin e começou a tocar, mas ficou petrificado, como todos os presentes, quando percebeu que das cordas saíam apenas desarmonias insensatas.

Chaplin sorriu, tirou o violino das mãos de Heifetz e tocou um trecho de Bach com a mão esquerda. Todas as cordas estavam montadas no sentido inverso.

“Entenda bem”, disse Chaplin, “eu sou uma pessoa feita ao avesso e de cabeça para baixo. Quando, na tela, dou-lhe as costas, o senhor vê algo expressivo como um rosto. Sou principalmente um dorso.” – Ecoou a voz de Bruno no microfone enquanto lia um artigo publicado em dezembro de 1920 no The New York Times, traçando o peculiar perfil do gênio cuja obra será o foco de sua apresentação. Enquanto falava, observou no meio da plateia um homem com um terno fora de tamanho e antigo como nos filmes retratando o início do século XX. Não conseguia ver seu rosto, apenas um chapéu de coco que apontava acima das cabeças no centro do auditório, seu portador era baixo e se encolhia dentre os presentes.

— Tempos Modernos oferece uma experiência peculiar ao combinar elementos do cinema mudo com os do cinema falado. — Continua Bruno percebendo o interesse do público em conhecer o dorso expressivo como um rosto. — A transição do cinema mudo para o cinema sonoro teve muita resistência, Chaplin mesmo não usaa própria voz no filme Tempos Modernos, outro canta ao final. Apesar de ter boa voz para gravar, por que então Chaplin esperou até 1940 para falar em um filme, em O Grande Ditador?

Ao terminar de lançar a pergunta um telão atrás de si iluminava-se com a presença de um dos maiores gênios do cinema subindo num palanque que não lhe pertence, construído com sangue e sonhos de milhares de cães vadios impossibilitados de descobrirem serem campeões arredios. Bruno viu seu rosto na bandeja que apoiava o copo d’água ao lado e se espantou quando olhou para os presentes no auditório, todos tinham o seu rosto, todos eram Brunos em roupas diferentes, em posturas diferentes, em sorrisos e tristezas, apenas o homem de chapéu de coco, deixando aparecer rente à cadeira uma bengala que balançava como um cipó continuava o mesmo. Os olhos de Bruno não se moviam tentando entender a cena que via, os lábios se distanciavam um do outro sem que ele percebesse. Imersas na brisa fria, em câmera lenta, as ondas sonorascomo arco-íris foram carregadas até baterem na sua nuca, espalharem para os lados, escorregarem no caracol das aurículas, adentrarem o conduto auditivo e chegarem ao tímpano.

“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos — se possível —, judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo — não para o seu infortúnio. Por que temos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da produção veloz, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura! Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessa aproximação é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que oprime seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir, eu digo: “Não desespereis!”

A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbirão e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, mesmo que morram homens, a liberdade nunca perecerá!

Soldados! Não vos entregueis a esses homens violentos… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação racionada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquinas. Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossa alma! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os desumanos.

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou de um grupo de homens, mas de todos os homens! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder — o poder de criar máquinas… o poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa! Portanto — em nome da democracia —, usemos esse poder, unamo-nos todos nós! Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém, escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à aventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, está me ouvindo?! Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah?! O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo — um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da violência. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”

Ao terminar o soar da voz imponente, os olhos de Bruno estavam fixos num ponto do teto quando viram um de seus braços enérgicos cortar o ar de maneira brusca com o dedo apontado para a eternidade, sentiu a boca sossegar, os lábios pararem de dançar e apenas tremerem como tremem as pernas após uma maratona. Percebeu que todo o discurso d’O Grande Ditador fora proferido por ele mesmo enquanto o telão estava apagado, era o ditador e os súditos na sua própria cabeça. Quando voltou a si, olhou para a plateia e não havia mais ninguém, todos os Brunos haviam desaparecido, restou apenas o homem de chapéu de coco, bengala engraçada e um bigode fino. O homem olhou para Bruno com tanta força, os olhos brilhavam como o céu interiorano de estrelas mortas, mas que não deixam de brilhar. Rente às pálpebras formou-se uma pequena poça como um oceano retido na alma, refletindo a poluição do jovem palestrante.

Bruno sentiu o corpo adormecer, não sentia mais suas funções vitais e tudo se concentrou na garganta. Tentou descobrir das sombras o homem à sua frente, mas nada saia, as palavras paravam na garganta e se aglomeravam, tapando sua respiração.

Não consegue respirar, respirar, ele quer respirar, palavras, deixem-me respirar!

Começou a roxear, seus lábios de vida tornaram-se tristes, para onde fora meu sangue? Olhava com os olhos vermelhos esbugalhados o homem à sua frente, como se esse pudesse ajudar.

— Não é a morte que deve temer, Bruno, mas nunca começar a viver, já sabia o imperador, esse é o pretexto da vida, todo homem deve morrer.

O homem bateu algumas palmas sinceras e espaçadas, os ecos das suas próprias palmas preencheram o ambiente vazio como se houvesse ali uma multidão.

— Só a verdade e a beleza podem convencer o público, há morte em seus olhos, mas a sua alma é bela como o reflexo na água límpida.

Bruno procurava algo para agarrar, já estava desesperado com a falta de ar enquanto o homem calmamente tirava do bolso um relógio.

— Se não conseguir tirar essa palavra da garganta, quando esse relógio apitar, você morrerá.

Colocou a mão sobre a garganta, queria gritar, a voz não saía, havia algo travando o ar.

— Não sairá com a força, somente a alma pode empurrá-la.

Bruno tentava se concentrar e entender o que ele dizia,como telepatia o homem sabia os pensamentos.

— A resposta está na sua própria apresentação, perceba o que eu já houvera dito, os melhores filmes foram feitos com pedaços de vida, na sua garganta estão pedaços da vida entalada, a carne crua que apodreceu debaixo da máscara.

Pense nos sonhos, Bruno. Quantos se perderam, quantos queria ser e deixou de ser em prol de um sistema que tem em si a essência da sua própria destruição, eu mostrei isso em Tempos Modernos. Pense, rapaz, quantas máscaras por vergonha de mostrar a própria face, deixou-te a face apodrecer.

Uma lágrima sufocada desceu no rosto de Bruno, banhando os minúsculos pelos nascidos entre os poros, imperceptíveis a olho nu. Como tsunami a lágrima desceu – ácido na máscara, carregando as angústias, todo o ser e não ser. Levou a vida da pele podre, lavou n’alma o pesadelo p|o|bre. Chegou à quina do queixo, se agarrou a um pequeno fio de barba com um pouco de caspa, e se jogou, como toda pessoa se joga no abismo entre a vida e a morte. Quando Bruno escutou sua lágrima se quebrar como vidro na mesa, olhou para a madeira pintada de branco com pequenas rachaduras por onde os pedaços da lágrima se escondiam, voltou a sonhar, lembrou de sua infância, desejou ver o mar, onde os pedaços não separavam. O oceano do palco, era um marinheiro conduzindo a multidão, logo as luzes da ribalta se apagaram, acreditou nos arrotos, seu sorriso não merecia o risod’arte. O sentimento cresceu dentro de si, mar|inan|do, mar|inhan|do, mar|ina|do decidiu domar o que é do|mar.

Sentiu o remexer involuntário da garganta, seu nó desabotoando para cima e para baixo, algo estava subindo, sentiu um gosto estranho e controlou a vontade de vomitar.

Cuspiu uma poça de sangue sobre a mesa.

Um zumbido muito agudo veio ao ouvido enquanto observava o sangue coagular sobre a mesa como se fervesse. Aos poucos o sangue tornou-se vermelho-escuro e se moldou até tomar forma da letra V. Bruno conseguiu respirar um pouco, mas logo a sua garganta travou de novo e o desespero voltou, não conseguia entender o que estava acontecendo com a sua boca coberta de sangue vivo, passou os dedos sobre os lábios e viu o sangue correndo para debaixo das unhas, como se tivesse medo de si próprio.

— Esse sangue que coagula tem a sua essência, se tens coragem para a lágrima, terá para dá-la sentido, só assim sua breve existência valerá|à pena, só assim se tornará a essência inventiva, e quando for o intérprete de si próprio, deixará de ser a imitação da vida. Se não se emocionar com quem és, rapaz, nenhuma lágrima correrá por ti. Entenda, a minha morte é o fracasso da humanidade, faça com que sua vida amenize a dor dos que suportam o peso dessa sociedade estúpida.

Bruno já estava muito roxo quando o homem proferiu as últimas palavras, sua vista aturvou, seus dedos incharam e os sentidos anestesiaram, pensava na morte, ainda não sabia se aquele homem era a morte ou a vida.

— Se deixares o sonho morrer serás mais um personagem de Tempos Modernos, agora que expulsou um dos pedaços de vida entalado dentro de si, dê-lhe sentido.

Ar, ar, ar, era tudo que Bruno queria, ar, ar, não conseguia se concentrar! A vista começou a escurecer, pensou em morrer, reviu o mar, no palco, oceano de ar, lá, lar, representar a vida, a verdade escondida, a alienação embutida, libertar os sonhos escravizados. A mão do marinheiro puxou forte a corda morta no palco, gritou, o pano abaixou, a mão do marinheiro puxou forte a voz morta na plateia, o punho, cerrou.

A vista começou a clarear com o vermelho subindo pela garganta, Bruno cuspiu outra poça de sangue que se debatia como um feto em carne viva, logo coagulou-se fervendo na mesa e formou a letra I.Seu corpo estava pálido como o cinza do cimento e as olheiras fundas tão fundas como o abismo dentro de si. A pele estava fria e úmida, ainda não virara poesia.

— Viva, rapaz, viva… tens o sonho e o sentido da vida, não estrague tudo com esse terno de vida finda. És alma, o corpo é apenas uma ferramenta. — Enquanto o homem falava, Bruno vomitava sangue e olhava diante de si formar mais uma letra, D.

— Se eu pudesse voltar a vida, sorriria mais, choraria mais. O riso e as lágrimas são os antídotos contra o ódio e o terror. Sorria, Bruno, é o que faz a vida valer a pena.

Quando Bruno cuspiu a última poça de sangue, sua garganta sentiu uma grossa camada de ar percorrer seu corredor levando o interior ao exterior. O zumbido deu lugar a um forte barulho de ventania entrando em seu corpo. Na mesa estava escrito com sangue a palavra VIDA. Quando olhou para frente, não havia mais ninguém, todas as cadeiras estavam vazias, apenas o barulho do ar condicionado, ao lado uma funcionária empurrava a porta com uma bandeja de café e pães para os convidados que hão de chegar, ainda faltava meia hora para sua apresentação. Bruno sabia não ter sido um sonho, o sangue da sua boca estava na mesa. O inconsciente reclamou ao consciente, e já não sabia mais em qual fantasia da vida vivia. Não conseguiu se conter dentro do terno, tirou e largou ali mesmo. Correu pelo corredor do museu até sair na praça São Salvador, correu! Seu peito se debatia ofegante, correu! Rasgou os botões da camisa branca lhe tapando o vento, correu! Passou pelos escravos modernos deixando seus engenhos às 18h, correu! Chegou ao Teatro de Bolso vazio, subiu no palco frio, e gritou com a alma:

 

VIDA!!!!

VIDA!!!!!!!!

VIDA!!!!!!!!!!!

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Sandra Machado

    Barbaridade Aluysio Linda música lindo Ballet Agora vou ler o artigo

  2. Savio

    Aí está um bom texto para ser debatido entre o Autor, o Psicanalista Luis Fernando Sardinha e Aluysio Barbosa. Podiam chamar também o Professor de Psicanálise Dr. Paulo Arthur Buchvitz. Isto ia ser bom à beça!

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