Prazo aos assassinos de Marielle, prisão de Lula e Moro eleitor do PT

 

Por Aluysio Abreu Barbosa, Matheus Berriel e Paula Vigneron

 

O prazo para que surjam resultados concretos das investigações da execução a tiros da vereadora carioca Marielle Franco (Psol) e o motorista Anderson Gomes, na noite de 14 de março, conta desde lá: 60 dias. Tomado como referência o caso da juíza Patrícia Acioli, assassinada pela milícia em 2011, é o que o deputado federal e pré-candidato a senador Chico Alencar (Psol) impõe como limite à impunidade. Embora crave como certeza que o homicídio de Marielle foi um “crime político”, ele não demonstra igual certeza na prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas questiona a Justiça no caso, assim como os erros do ex-presidente e do PT. Ele também criticou a intervenção federal no Rio, o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e revelou uma surpresa: o juiz federal Sérgio Moro foi eleitor do PT em 2014. Como historiador, Chico analisou os difíceis dias presentes e projetou como seremos vistos pelos olhos futuros.

 

(Foto de Paulo Pinheiro – Folha da Manhã)

 

Folha da manhã — A vereadora carioca Marielle Franco (Psol) se tornou conhecida no Brasil e no mundo após ser executada covardemente. Mas você a conheceu pessoalmente. O que pode dizer da vida da mulher, mãe, militante, socióloga e política?

Chico Alencar — Sobre a Marielle, eu falo a partir da profunda falta que ela faz. Da pessoa que tinha uma trajetória de vida extraordinária; foi ceifada no seu direito elementar de ter uma biografia que seria muito importante para o país inteiro, para os jovens. Ela superou a condenação social em que nasceu, isto é, na Maré, sem oportunidades.

 

Folha —  Fez o primeiro pré-vestibular que teve na Maré.

Chico —  Filha de migrantes nordestinos, partiu de um pré-vestibular popular. Eu a conheci dessa época. Superou essas barreiras sociais, fez a PUC com bolsa, formou-se em sociologia…

 

Folha —  Depois a UFF.

Chico — Fez mestrado em administração pública e nunca deixou de ser militante social, estimuladora da organização da sua gente, participativa de várias organizações da própria Maré, e incorporando, inclusive, na sua militância, o que a gente chama de novas pautas, que vão além daquelas tradicionais da velha esquerda…

 

Folha — LGBT, feminismo.

Chico — Exatamente, feminismo, LGBT, contra as opressões de maneira geral. Então, a Marielle tinha uma trajetória extremamente promissora. Uma pessoa alegre, de bem com a vida, afirmativa, corajosa, da paz, boa de relacionamento…

 

Folha — Ela parecia equilibrar coragem e serenidade.

Chico — Exatamente. Tinha todas as qualidades possíveis, e se afirmava. No nosso mundo, você sendo mulher, negra, de origem pobre, bissexual… Eu, inclusive, que tenho formação religiosa, de certa maneira abençoei uma união dela com o Edu, que depois se desfez. Mas, ela teve uma formação inclusive na Igreja Católica progressista, ligada à teologia da libertação. Enfim, a Marielle era, como diz a música “Maria, Maria”: “uma mulher que tinha garra, gana, sonho, sempre; uma mulher que merece viver e amar, como outra qualquer do planeta”. Esses facínoras impediram isso. Já se vão 24 dias (a entrevista foi feita no sábado, dia 7). Até agora, o que a nossa polícia investigativa conseguiu foi achar, talvez, o número de celular de um dos caras que estavam no carro dos criminosos. Mas, quem sabe, vamos avançar. A gente tem um prazo, um deadline.

 

Folha — Qual é esse prazo?

Chico — Sessenta dias. É como eles sempre dizem, as autoridades de segurança, do general Braga Netto, interventor, ao chefe da Polícia Civil, que uma pessoa correta, o Rivaldo Barbosa: o caso da juíza Patrícia Acioli foi desvendado em 60 dias.

 

Folha — Ia comentar sobre isso. Vê similaridade no caso dela com o da Patricia Acioli, executada na porta de casa, em 2011, com 21 tiros?

Chico — Vejo, vejo. A Patrícia, no lugar de poder que tinha, no Judiciário, denunciava violência…

 

Folha — 16ª Vara de São Gonçalo.

Chico — É. Do batalhão (de Polícia Militar) de lá. E aí, como incomodava, ela foi emboscada e chacinada.

 

Folha — Como juíza, ela foi responsável pela prisão de mais de 60 policiais ligados à milícia. Vê similaridade?

Chico — Vejo. A Marielle, pela sua postura, incomodava muito. Trabalhou na CPI das Milícias, como assessora do Marcelo Freixo. Eu suponho que uma das hipóteses desse crime…

 

Folha — Foi um recado à intervenção federal no Rio?

Chico — Não, eu acho que foi mais um recado para o (deputado estadual) Marcelo Freixo (Psol, principal denunciante das milícias fluminenses), de que a vingança é um prato que se come frio, às vezes. O Marcelo anda muito bem protegido, como tem que andar mesmo. E a Marielle, não. Como qualquer um de nós do Psol, que denunciamos as mesmas coisas que ela, a gente nunca se preocupou em ter carro blindado, segurança… Talvez, tenha que se preocupar agora. Cuidados. Eu acho que foi um recado de vários tipos. Nós não fazemos parte daqueles políticos que, como César Maia e Eduardo Paes (ambos do DEM e ex-prefeitos do Rio), por exemplo, disseram que milícia é autodefesa comunitária, um mal necessário. Para nós, está no nível do bandidismo, como o tráfico armado. Até pior, porque o crime organizado é tanto mais organizado, quanto mais tem imbricação e elos no aparato de Estado. Inclusive, para investigar é mais difícil. Policial investigando policial…

 

Folha —  Em artigo publicado no Jornal do Brasil (JB), em 26 de março, sobre a perda de Marielle, você abriu com uma citação do livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, do escritor moçambicano Mia Couto: “morto amado nunca mais para de morrer”. O sentimento é esse?

Chico — Sem dúvidas. Isso vale para a vida pessoal de cada um. As pessoas que a gente gosta e vão antes de nós, ficam como uma saudade que às vezes reaviva, dói, machuca. É a perda. Nós somos seres de perdas, também. Mas, no caso da Marielle, essa morte ela é vivificada e relembrada pelo caráter brutal que ela teve. Quando há uma doença e a pessoa vai degenerando, essa ruptura do corpo inanimado, a voz que não mais fala, a lágrima que não corre, o olhar que não brilha, a gente arruma modos e meios, na dimensão religiosa ou fora dela, de se conformar. É o ciclo da vida. Tudo passa, tudo morre. A semente cai na terra para brotar de alguma maneira. Quando a morte é por um acidente de carro, ainda assim, vem o elemento da fatalidade. Você reclama um pouco, diz que podia ter mais atenção, não devia ter viajado naquela hora, por um segundo ou centímetro isso não teria acontecido. Ainda assim, você acaba se conformando. Agora, quando uma vida é arrancada…

 

Folha — Com quatro tiros na cabeça.

Chico — Com quatro tiros na cabeça, tudo pensado, é algo que te deixa muito chocado. Esse tipo de morte não para de aparecer na nossa mente e nunca vai parar. Tem uma música do Milton Nascimento e do Fernando Brant, que são meus amigos pessoais, o Fernando também já se foi, precocemente, feita para o John Lennon. Lá pelas tantas, ele fala assim: “Oh! Minha estrela amiga. Porque você não fez a bala parar”. Dói isso. Até hoje, eu não acredito que a Marielle não existe mais, não está aqui, porque era uma pessoa cheia de vida. Inclusive, a gente teve um debate intenso, sempre fraterno, até agora, dentro do partido, para ver a questão da candidatura ao senado, porque o grupo dela, com muita legitimidade, considerou a possibilidade dela, nesse movimento de afirmação da mulher, tendo ela como uma liderança expressiva nesse sentido, disputar também o Senado.

 

Folha — Você falou no deadline de dois meses. Citando outro autor de língua portuguesa, o luso José Saramago; em “O ano da morte de Ricardo Reis”, ele escreveu: “os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros”. Vinte e quatro dias depois, o que os vivos podem dizer sobre os assassinos de Marielle e Anderson Gomes, seus mandantes e motivos?

Chico — Que eles se inserem na escalada fascista que há no Brasil. O fascismo não existe mais como um modelo político, proclamado e esculpido num programa partidário. Não existe mais ou não existe ainda. Mas, ele aparece em gestos, posturas, atitudes, de maneira meio fragmentada. No Brasil, esse clima de ódio, de intolerância, que se vê muito nas redes sociais, ele alimenta, inclusive, a maquinação de grupos paramilitares, de grupos muito profissionais. Quem alvejou a Marielle e, por tabela, matou o Anderson, é profissional, é atirador de elite. Olharam a agenda dela, foi tudo bem planejado. Então, o que nós, vivos, temos que dizer, é que é preciso resistir. Não só pela memória dela e do Anderson, sempre é bom lembrar, mas pela sanidade e pelo processo civilizatório do país. Se essa escalada da violência continua, tudo se resolve à bala…

 

Folha — Desde 2014, o Brasil registra cerca 60 mil homicídios/ano. É mais do que a Guerra da Síria.

Chico — É. Mas, o mapa da violência no Brasil diz que o morto assassinado no Brasil, em 80% é jovem, pobre e negro ou não branco. Que é, não por acaso, a base da população carcerária do Brasil, que é a que mais cresce no mundo. Isso vale também para policiais. A Marielle tinha essa qualidade também.

 

Folha — Ela prestava assistência a familiares de PMs assassinados, que também são um número absurdo.

Chico — A morte brutal é sempre brutal, independente se a pessoa está com farda e é das forças policiais ou se é um civil, digamos assim. Ela não fazia essa discriminação. Há uma escalada de violência, que tem um viés político também. O Bolsonaro (PSL, pré-candidato a presidente) é a figura visível que mais expressa essa intolerância, esse ódio. Inclusive numa concepção também absolutamente rude, importada dos Estados Unidos, que é a de a cada cidadão, uma arma. Esses dias, o filho dele falou: “nós defendemos tanto a igualdade de homens e mulheres que achamos que as mulheres têm que usar arma, sim. Pois, ao invés de ter feminicídio, vai ter homicídio”. Fez uma gracinha de palavras. Uma concepção que é, inclusive, comprovadamente letal. O bandido comum usa muito o fator surpresa. Se você tem uma arma e, obviamente, se nem o policial treinado consegue, no mais das vezes, reagir, sacar, se você tem uma arma, ele não só te mata, como toma a arma. Ou seja, é uma estupidez total. Mas, esse tipo de ideia tosca está crescendo na sociedade.

 

Folha — Analisando o início dessa divisão entre direita e esquerda, o Thomas Paine (1737/1809), que é um dos principais ideólogos do que hoje chamamos esquerda, defendia que cada cidadão tivesse uma arma. Mudaram os valores?

Chico — Sim, mas ali era um outro momento, um outro contexto. Inclusive, não tinha se consolidado a ideia do monopólio do uso da força, determinado pelo estado democrático de direito. Isso significa um corpo policial que respeite rigorosamente a cidadania, a democracia, e que seja uma força preventiva e investigativa sobretudo, para inibir a violência da sociedade.

 

Folha — Se estivesse vivo, o Paine, hoje, defenderia outra coisa?

Chico — Ele estaria muito mais papara Martin Luther King (1929/68), do que naquele momento. Até o São Tomás de Aquino (1225/74) já defendeu o uso das armas numa insurreição popular, em casos de tirania prolongada.

 

Folha — Gandhi (1869/1948), na II Guerra (1939/45), defendeu pegar em armas contra Hitler (1889/1945).

Chico — Pois é. O que está se falando é uma outra coisa. Numa situação de paz, apesar de haver muito conflito social, você defender que cada cidadão tenha uma arma. Isso inclusive expressa o descrédito total nas políticas públicas de segurança.

 

Folha — Após a morte de Marielle, no Fla x Flu das redes sociais, um caso causou espécie: a desembargadora Marilia Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ). No Facebook, ela afirmou que a vereadora “estava engajada com bandidos” e “foi eleita pelo Comando Vermelho”. Depois, disse que “leu num texto de uma amiga”. Mas, a partir dela, as informações inverídicas rapidamente viralizaram. O Psol entrou com representação no Conselho Nacional de Justiça contra a magistrada. Em que pé está?

Chico — Já foi acolhida a nossa representação no Conselho Nacional de Justiça, e eles vão examinar. Certamente, ela vai sofrer algum tipo de sanção. É claro que o poder judiciário se autroprotege muito, tem muitas barreiras da corporação para não questionar os seus membros. Mas, ela ultrapassou todos os limites, foi além e desrespeitou a própria função que exerce. Não foi a única autoridade que falou sandices, não. Dois deputados federais também entraram nessa linha. O deputado Alberto Fraga (DEM/DF), que paradoxalmente é o relator do Sistema Único de Segurança Pública, que nós devemos votar essa semana que chega, e o deputado pastor Marco Feliciano (Podemos/SP). O deputado Alberto Fraga no twitter dele, e o deputado Marco Feliciano num programa de rádio de grande audiência. Além de calúnias quanto à Marielle nessa linha da desembargadora, no caso do Feliciano, foi de uma insensibilidade e uma crueldade total. Resolveu contar uma piadinha no ar, no momento em que se falava do caso da Marielle. Além das mentiras que falou contra ela, dessa linha de ser casada com traficante, mandar os traficantes atirarem na polícia, umas mentiras totais, ele falou que “num dia desses deram um tiro na cabeça de um esquerdista, no Rio de Janeiro, e ele levou uma semana para morrer, porque esquerdista não tem cérebro”. Eu já o interpelei diretamente na Câmara, ele falou que era uma mera brincadeira, que não tinha nada a ver com o caso da Marielle. Tá bom (irônico). E ele ainda usa a moldura de pastor, de cristão. É uma aberração. O Brasil vive tempos de aberrações. Me parece que tudo é permitido. Eu estive, anteontem (quinta-feira, 05), com o subprocurador geral da República, porque nós fizemos uma representação contra o Feliciano lá na Procuradoria Geral da República. Eles estão analisando, porque a imunidade parlamentar não significa imunidade total, inclusive incitar o ódio. O Bolsonaro, inclusive, tem processo no Supremo porque incitou estupro, no caso da (deputada federal) Maria do Rosário (PT/RS). É preciso colocar um limite nessa gente estúpida e hipócrita.

 

(Foto: Paulo Pinheiro – Folha da Manhã)

 

Folha — Quem reproduziu a fakenews da desembargadora sobre Marielle, sem checar a veracidade das informações, depois de questionado, tentou justificar: “mas quem disse foi uma desembargadora”. Não parece ser o caso de alguém que, vivendo nos anos 30 do século passado, ecoasse que “judeus e negros são raças inferiores”. E, se questionado, tentasse justificar: “mas quem disse foi o líder da Alemanha”? Como historiador, o paralelo é válido?

Chico — Sua observação é muito interessante. Pode valer como um paralelo de atitudes autorizadas por figuras públicas, de relevo e reconhecidas socialmente. Só que, agora, a potência disso é muito maior, porque na época do Hitler, do Mussolini (1883/1945, Itália), do Salazar (1889/1970, Portugal), do Franco (1892/1975, Espanha), não tinha internet. Agora, isso se espalha de maneira muito mais ampla. A internet, inclusive, é um espaço que abriga a covardia. Você não precisa se identificar, pode ter um perfil falso. Isso é avassalador. São as contradições do nosso tempo e do avanço tecnológico. A internet democratiza a informação por um lado, mas também espalha com uma dimensão muito massiva a calúnia, a mentira, a estupidez. Qualquer um se sente à vontade para falar qualquer coisa. O território livre da internet se tornou o território da irresponsabilidade. Nas eleições, que estão chegando, é claro que as fake news vão…

 

Folha — Elegeram Donald Trump presidente dos Estados Unidos.

Chico — Pois é. Elas vão prosperar. Mas, eu vejo, lá no TSE, preocupação com isso.

 

Folha — Esse caso da Marielle preparou bastante a mídia e a Justiça para trabalharem com isso.

Chico — A Justiça já determinou, o próprio youtube tirou vídeos…

 

Folha — O Globo também fez um grande trabalho de levantamento (aqui), de onde veio, o passo a passo.

Chico — Foi, foi. Isso é importante. Agora, tem um espaço que é incontrolável. Assim como num botequim você conversa e fala o que quer, como piadas machistas, sexistas, de conteúdo autoritário e violento, na internet, em vez de estar com três ou quatro, você está com trinta ou quarenta, alguns milhões. Mas, nesse aspecto, eu não acho que, para falar de repercussão de mídia, se minimizou ou deu ênfase às manifestações de repúdio ao assassinato da Marielle. Inclusive, a mídia deu destaque, como tinha que dar mesmo, porque é um caso muito relevante. É um crime político. Não creio que…

 

Folha — Afirma que a morte da Marielle foi um assassinato político?

Chico — Afirmo. Sem dúvida nenhuma, em função das posições dela, da história dela, do trabalho dela em outras instâncias, anterior ao mandato, pelo que ela simbolizava. Claro, isso é crime político. Não foi por desavença pessoal, nem por nenhum aspecto passional. Nem assalto, obviamente. Não quiseram nem disfarçar. Às vezes, disfarçam levando o carro, alguma coisa.

 

Folha — O crime normalmente geraria indignação. Durante uma intervenção militar no Rio de Janeiro, mais ainda. Como avalia essa fase inicial da intervenção?

Chico — Eu produzi uma reflexão, a partir de muitos debates, inclusive com autoridades, com o próprio general interventor, o Braga Netto, sobre essa intervenção. Primeiro, o seu caráter político. O governo federal, do PMDB, quando intervém no governo estadual, também do PMDB, está muito mais pensando em votos do que vidas. Perdida a pauta da previdência, eles trataram de arrumar uma outra pauta que tem repercussão social. Evidente que a questão da violência nos afeta a todos, cotidianamente. Agora, vou citar o indigitado general Villas Bôas. Não foi o último tweet dele (pregando a defesa da Constituição, antes da votação do Habeas Corpus de Lula no STF), mas uma fala no Senado. Disse que o modelo de emprego das Forças Armadas, que é a militarização da segurança, a presença efetiva na Maré, durante 14 meses, esse modelo é desgastante, perigoso e inócuo. Então, ele considera que uma intervenção desse tipo não traz resultado. É o uso indevido, inclusive, de forças que não estão preparadas para o policiamento. Além da medida eleitoreira, explorando o real sentimento de medo e insegurança da população, representa um pacto político. O governo do PMDB central, que é uma coalizão de investigados, réus, faz a intervenção no governo estadual, também do PMDB, que é o governo que levou o Estado ao seu pior estágio, faliu o estado. Então, tem um quê de ilegitimidade aí. Tivemos com o general Braga Netto, ele falou que precisa de R$ 3 bilhões e o governo liberou R$ 1 bilhão e pouco. E isso gera problema também com os outros Estados, que, naturalmente, também querem esses recursos. Os militares estão muito reticentes em relação a essa intervenção. Eu diria que, nesse mês e meio de intervenção, a situação da violência não teve nem aquele natural apaziguamento inicial, quando as forças do crime ficam com receio. É como o lutador de boxe…

 

Folha — Estudando o oponente no primeiro round.

Chico — Eu sou do tempo do boxe, não sou do UFC, que eu acho horroroso. No boxe, durante o primeiro round, tem um estudo, ninguém arrisca muito.

 

Folha — Aí veio o Mike Tyson (ex-campeão peso pesado de boxe) e acabou com isso.

Chico — Pois é (risos). Mas, no caso do Rio de Janeiro, piorou. Vide não só o assassinato da Marielle. A chacina de Maricá, as incursões… Ontem (sexta-feira, 6), eu ouvi os tiros lá perto da minha casa, moro em Santa Tereza. Teve uma guerra no Fallet. Um taxista, que eu peguei carona com ele, me falou que foram 11 mortos, eu não li o noticiário. Então, a mortandade está crescendo. Não inibiu ninguém até agora. Os militares da intervenção ainda estão perdidos. Eles quase falam isso. O general Braga Netto nos disse: “ainda estou montando o gabinete da intervenção, estou conhecendo essa engrenagem”. O general Richard, e todos bem intencionados, reconheço, que é o secretário de Segurança, falou: “nunca imaginei na minha vida estar nessa função. Eu estava muito bem lá no Comando Miliar do Leste. Agora, estou aqui, vou fazer o melhor possível. Mas, no fim do ano acaba”. Parece que eles estão querendo que acabe logo.

 

Folha — Apesar desses argumentos, é inegável que grande parte da população aprova a intervenção. 

Chico — Claro.

 

Folha —  Como você avalia isso? E você acha que isso está diretamente ligado à guerra política de direita e esquerda?

Chico — É uma questão de apreciação da sociedade. As pessoas, isso é um conceito e estudo do Gramsci (1891/1937, ideólogo italiano no marxismo) porque ficou preso muito tempo e pôde estudar bastante. Aliás, tem tanta gente da elite política indo para a prisão que deveriam aproveitar para estudar, para melhorar humanamente. O Cunha e companhia. Mas, o Gramsci, a partir das cartas da prisão…

 

Folha — Os “Cadernos do Cárcere”.

Chico — É, do cárcere. Ele trabalhou a percepção humana como o senso comum, o bom senso e o senso crítico. Três estádios. Normalmente, por deficiência de informação, de oportunidades educacionais e culturais, a grande massa fica só no senso comum. O estado comum é o seguinte: o estado falido, governo de ladrões a gente morrendo, a violência aumentando, por causa da profunda crise social, a segurança pública nos deixa totalmente vulneráveis. Alguma coisa precisa ser feita. Aí, quando vem a notícia de intervenção militar, a credibilidade que as forças armadas têm hoje, e eu sou sobrevivente da ditadura militar (1964/85), e os militares foram tidos de muita má conta naquela época. Mas, eles passaram tanto tempo de superação da ditadura, embora a gente ainda não viva uma democracia muito substantiva, eles se afastaram da política e têm muita credibilidade. Embora eles tenham dificuldade de reconhecer os erros terríveis do passado.

 

Folha — Estamos conversando agora (início de tarde do sábado), enquanto o ex-presidente Lula pode estar se entregando à prisão (o faria algumas horas depois), após condenação em duas instâncias. Como fica essa coisa de reconhecer os erros por parte da esquerda?

Chico — Um dos problemas da esquerda, particularmente do PT, embora não só dele, é a profunda dificuldade de fazer algo que sempre foi muito caro para a esquerda, que é a autocrítica. Os governos do PT, embora tenham tido políticas sociais relevantes, que tinham que ter, senão seria o fim da picada. Eu não sou daqueles, como até alguns setores minoritários do Psol, que acha que o governo do PT é igualzinho ao do Fernando Henrique (PSDB). Os oito anos do Lula e mais quatro da Dilma iguais aos anteriores. Não. Têm diferenças, têm nuances. Agora, houve um continuísmo em muitos aspectos, sobretudo naquilo que é mais estrutural e sistêmico, que é o chamado capitalismo de laços no Brasil e a espúria parceira público-privada na instância pública. Então, houve muito compadrio nesse sentido.

 

Folha — No início da sua delação, que puxou toda a corrupção eviscerada pela Lava Jato, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa disse  que isso vem desde que Dom João VI (1767/1826) chegou ao Brasil.

Chico — Pois é. A gente está na política para mudar. Como se dizia, quando Lula assumiu: construir uma nova gramática do poder. Isso, infelizmente, deixou a desejar. Não avançou. Embora a condenação específica do Lula, ela tenha…

 

Folha — Por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Chico — Mas, aí, o que é corrupção passiva? É receitar propina derivada de algo sem materialidade, nesse caso específico, que são contratos na Petrobras que valeram a reforma do tríplex do Guarujá. Só que eu aprendi no Direito que, se não está nos autos, não está no mundo. E ali, de fato, não tinha. Se o Lula tencionou comprar, como eu até acho subjetivamente que sim, quando saiu a notícia, desfez. Não tem escritura, não tem nada. E, além do mais, esse tipo de problema não é o central da corrupção brasileira, que movimenta milhões e contas no exterior e paraísos fiscais.

 

Folha — Bilhões.

Chico — Algo muito mais pesado. Agora, ele deriva. Não por acaso, o primeiro delator do Lula foi o Léo Pinheiro, seu amigão. O Delfim Neto falou que o Lula salvou o capitalismo no Brasil. O Olavo Setúbal, banqueiro, disse que o Lula foi uma grata surpresa. O Lula disse que os usineiros eram os verdadeiros heróis nacionais. Então, houve uma conciliação de classes e uma confiança em setores dominantes que, agora, revelam um ódio ao Lula e ao próprio PT que é absurdo e ingrato, inclusive. E alimenta esse tipo de intolerância dos setores mais reacionários da extrema-direita. A condenação em si do Lula expressa algo do sistema judicial brasileiro: ele tem dois pesos, variadas medidas e diferentes ritmos na apreciação das acusações. Porque Paulo Preto (operador do PSDB, que bom, foi preso preventivamente (na sexta, dia 6), dentro da lei. Mas há 15 anos que a gente…

 

Folha — Se ele falar, cai o PSDB.

Chico — Pois é. Mas a gente sabe há 15 anos do Paulo Preto.

 

Folha — Ele falou que não quer mais ser chamado de Paulo Preto.

Chico — Ah, é. Pois é. Paulo alguma coisa.

 

Folha — Paulo Vieira de Souza.

Chico — Era como ele era conhecido lá. Ele era o grande armador financeiro das negociatas do PSDB.

 

Folha — Ele está para o PSDB como o Delúbio Soares e depois João Vaccari Neto estiveram para o PT.

Chico — Exatamente. O (Eduardo) Azeredo (PSDB), de Minas Gerais, ex-governador, está condenado em segunda instância há mais de 20 anos. Não julgaram até agora. Estão dizendo que será na semana que vem (esta).

 

Folha — Esse paralelo tem sido feito pela esquerda, mas…

Chico — Não é com o Moro, eu sei.

 

Folha — Não é nem isso. É que Eduardo Azeredo foi condenado na segunda instância por 2 a 1. E Lula, por 3 a 0. Por 2 a 1, você tem os embargos infringentes, além dos embargos declaratórios. É o trâmite recursal fixado em lei. Por isso a defesa de Lula brigou para ter, pelo menos, um voto no TRF-4.

Chico — E acreditava que ia ter. O sistema judicial brasileiro, e isso vale para todo o seu corpo de leis, é de dois pesos e duas medidas. E de ritmos diferentes. O caso do Lula, inclusive, na instância recursal, furou a fila. Tinham sete outros recursos pedidos antes, inclusive da mesma Lava Jato, começando com o do Palocci. Então, têm esses elementos políticos. Porque tirar o Lula da disputa eleitoral, e eu falo como não eleitor do Lula nessa futura eleição, é muito importante, com o evidente exagero. E eles tiveram Meirelles, Levy, Padilha, Moreira, Temer dentro do governo. Ou seja, é o mesmo sistema, mesma engrenagem, mas parece que nem essa serve mais. Olha, sinceramente, para setores da classe dominante, em um momento de tensão como este, o Lula poderia ser uma boa.

 

Folha — Poderia ser o conciliador.

Chico — Exatamente. Mas a radicalização está levando a isso. E a injustiças, portanto.

 

Folha — Você afirmou, categoricamente, que o assassinato de Marielle foi um crime político. Chamaria a prisão de Lula de política?

Chico — É, por essas características. O objetivo político que emoldura esse processo judicial. E, aí, erros do PT levaram a isso também. De certa maneira, o PT está colhendo o que não plantou, que é uma distância, uma linha firme entre o público e o privado.

 

Folha — Colhendo o que não plantou?

Chico — É. O que deixou de fazer quando pôde fazer, que é não se aproximar de certos setores. Manter aquilo que sempre foi o discurso do PT e que, pelas contradições, fez com que muitos de nós saíssemos do PT. Então, eu diria que tem esse contexto político. Agora, a gente não deve idolatrar o Lula. Eu acho indevida e exagerada a comparação com Luther King, Mandela. Eu já vi até nas redes sociais. É uma tendência meio humana também de compará-lo com Jesus Cristo. Menos, né?

 

Folha — Nem o Lula, nem o Moro. 

Chico — Anteontem (04), o (Roberto) Requião senador do Paraná (pelo MDB, mas considerado de esquerda), falou: “olha, dizem Moro é um americanista, pela formação dele, mas não é aquele cara agente da CIA. Pelo contrário, sabe em quem ele votou em 2014?”, perguntou o Requião, que é do Paraná e já teve relação mais próxima com o Moro. Ele votou em Dilma para presidente, Ângelo Vanhoni, que eu conheço e é um deputado do PT,  e o Tadeu Veneri, que é um deputado estadual do PT também.

 

Folha — Moro, então, quem diria, foi eleitor do PT em 2014?

Chico — Então, não tem que dizer que esse aqui expressa o bem absoluto e esse aqui, o mal total. Isso aí é querer mistificar a própria existência humana.

 

(Foto: Paulo Pinheiro – Folha da Manhã)

 

Folha — Em maio de 2016, o filósofo Pablo Ortellado, professor da USP, cobrava um “ponto de partida para uma esquerda corajosa que queira se desvencilhar do abraço do afogado”. E disse como: “Para isso, ela precisa, por um lado, se separar e se distanciar criticamente do PT e, por outro, respeitar e acolher o sentimento de indignação da população com a corrupção”. O título do artigo era uma pergunta “É possível falar de corrupção a partir da esquerda?”. É?

Chico — Eu li esse artigo. É possível e é necessário. Se nós temos como centro da nossa visão de mundo a igualdade absoluta entre todos os seres humanos; a democracia de alta intensidade, com participação plena. Isso pressupõe uma ética fundamental. E ética fundamental significa não fazer nenhuma concessão à corrupção. Então, nenhuma concessão ao patrimonialismo. Nenhuma concessão, mesmo em torno de uma boa causa, como ganhar uma eleição, a benesses e financiamentos de grandes corporações, porque não tem almoço grátis. Quem contribui para a sua campanha vai querer, depois, cobrar isso. Como diz o nosso vereador e pré-candidato ao governo do Estado pelo Psol do Rio de Janeiro, Tarcísio Motta: “quem contrata a orquestra escolhe a música”. E o PT, nessa, ele entrou direto. Eu me lembro: Lula me falou que estava cansado, isso em 1998, na minha casa, no Rio, de “ficar rodando a bolsinha para o povo brasileiro na rua. Chuva, sol. Falei para o Delúbio: arruma grana para a gente, na próxima campanha, ter o Duda Mendonça. Sem isso, eu estou fora. Não disputo mais a eleição”. Então…

 

Folha — Aí, Duda veio e criou o “Lulinha paz e amor”.

Chico — É. Aí, veio o Duda, que, depois, confessou que recebeu até dinheiro em paraíso fiscal. Ali, para nós, foi a facada que levou à nossa ruptura.

 

Folha — Foi ali que vocês saíram, no dia em que ele admitiu isso na crise do “Mensalão”, em 2005. 

Chico — Foi. Exatamente. Foi no dia que ele falou na CPI. A gente ficou chocadíssimo.

 

Folha — Lembro que você chegou a chorar. 

Chico — É. Vários de nós. Eu fiz um cartaz. Eu sou canhoto, com a minha letra meio torta, e estava escrito assim: “Não em nosso nome”. Para nós, foi muito doloroso aquilo. A ruptura com o PT foi muito pesada. Mas eu acho que uma esquerda ressignificada, moderna precisa fazer um balanço crítico disso tudo aí. Tem certa batalha contra a corrupção que se inscreve no chamado moralismo udenista, como falam.

 

Folha — Exatamente. Nos anos 1980, Brizola (1922/2004) chegou a chamar o PT, no início, nos anos 80, de “UDN de macacão”. Como essa postura moralista do partido mudou? 

Chico — Mas, aí, o Brizola também fazia concessões. Ele não era nenhum modelo de ética, revolucionário.

 

Folha — Mas foi uma liderança importante no estado e no país. 

Chico — Ele tinha razões. Mas o problema é você ter instituições transparentes sobre controle social, inclusive o Judiciário, e empoderamento popular. Com isso, você combate muito mais a corrupção. Não é que vá acabar. Mesma na Suíça tem corrupção. Bom, tem a institucional, com os bancos lá. Mas na Suécia, na Noruega, nos países do chamado bem-estar social, com alto grau de democracia e educação da sua população, tem sempre um ou outro que afana. Os espertos estão aí. Mas sistêmica, como no Brasil, tem que ser combatida também sistemicamente.

 

Folha — Outro filósofo da USP, Vladimir Safatle, fez críticas à aproximação da esquerda, não só no Brasil, como na América do Sul, à realpolitik de Bismarck (1815/98), depois que chegou ao poder, sobretudo nos anos 2000. No lugar de reformar o Brasil arcaico, o PT não se submeteu a ele, como no conluio com as grandes empreiteiras? E agora não paga esse preço? 

Chico — Sem dúvida. O Vladimir faz uma análise que vai além disso. Ele fala que a gente vive em tempos de esgotamento da chamada Nova República. A luta da minha geração, quando no seu vigor juvenil para superar a ditadura, gerou essa Nova República, a Constituição Cidadã de 88. Imagina que houve assembleias populares para levar contribuições à elaboração da Constituição. Eu era da Famerj na época, Federação das Associações de Moradores. A gente fez um encontro de três mil pessoas naquele auditório imenso da Uerj para levar propostas em relação à moradia, saneamento básico. E eu fui lá, como representante da Famerj, na Constituinte. Eu não era parlamentar. Lembro que sentei ao lado do Vladimir, meu líder na juventude, mais velho do que eu…

 

Folha — O Vladimir Palmeira.

Chico — É. Vladimir Palmeira. E, do outro lado…

 

Folha — Porque a gente falou do Safatle aqui. Para não confundir. 

Chico — É, é. E nem o Wladimir, filho do Garotinho. Muito menos. Mal comparando. Perdão, Vladimir Safatle e Vladimir Palmeira. Mas o Palmeira de um lado e o Delfim Netto de outro. Ele era meu algoz. A gente chamava de gordinho sinistro. Olha o gordofobia (risos). Na época, não tinha esse politicamente correto tão forte. Mas eu fiquei meio encantado. E eu era um mero representante de um congresso popular da Constituinte. Veja que coisa bonita e boa. Eu continuo achando que a Constituição de 88 é a mais avançada que a gente tem. Alguém já disse, a partir dela, que, no Brasil, cumprir a lei já seria revolucionário. Agora, essa Nova República, que levantou tantas expectativas de democracia plena, de participação popular, de plebiscitos e referendos, de um Brasil novo e bonito que as Diretas Já (1984) também revelaram, com massa na rua, comícios; isso tudo se esgotou. Os partidos, as estruturas estão todas degeneradas, degradadas.

 

Folha — Acha que o Brasil da redemocratização está no ocaso? Chegou ao fim?

Chico — Não. Não chegou ao fim. Eu acho que tem que ter mudanças radicais e profundas. Só que a gente está vivendo, de novo o velho Gramsci, o período do interregno. Ou seja, o velho ainda não acabou de vez. Temos aí as eleições e a probabilidade de que partidos corrompidos e com as velhas práticas continuem e tenham sobrevida. Veja, hoje (sábado) encerra o troca-troca partidário, a janela de transferências. Foi um toma lá, dá cá danado. Negociata total. Um feirão para ver o que o partido oferecia em termos de dinheiro público para campanha. Todo mundo fazendo cálculo eleitoral. O partido que, provavelmente, foi um dos que mais cresceu foi o PP. Veja que paradoxo.

 

Folha — Junto com PT e PMDB, o PP foi o um dos partidos mais afetados pela Lava Jato.

Chico — É. E eles parecem que estão achando que isso é irrelevante no senso comum do eleitorado. Agora, vai levar tempo, ainda, entre a morte desse sistema apodrecido e da crise da representação até a afirmação de novas formas da política. Então, a gente vive esse intervalo trevoso aí.

 

Folha — Deputado, o senhor é historiador. Então, eu queria terminar essa entrevista lembrando dois historiadores. O primeiro é um cara relativamente novo que tem revolucionado, o israelense Yuval Noah Harari.

Chico — Sim. Eu adoro aquele livro dele.

 

Folha — “Sapiens — Uma breve história da humanidade”.

Chico — Eu demoro a acabar. Ele é grandão, mas eu volto. Ele me bota muita minhoca na cabeça: “poxa, eu nunca tinha pensado nisso.”

 

Folha — Comigo também teve o mesmo efeito: ele rearruma as ideias. E estamos vivendo no Brasil, nas redes sociais e nas ruas, um debate muito polarizado entre direita e esquerda. Nesse livro, Harari afirma que é um equívoco achar que partir do Iluminismo, no séc. XVIII, o Ocidente vive um império da razão. Ele diz que uma religião pode se fundamentar não só no sobrenatural, mas na crença em uma ordem sobre-humana. E, neste sentido, classifica o humanismo como religião, que divide em duas seitas: o capitalismo e o socialismo. Como avalia isso? 

Chico — Pois é. Ali, ele é provocador, ele instiga. Ele começa dizendo que não tem um grupo humano único, primário e original, que deu origem a esses Sapiens aqui. Têm muitos grupos humanos e tal. É muito interessante. E que vários fatores, não só o econômico, embora ele tenha peso, explicam a sobrevivência e a caminhada das humanidades aqui no planeta Terra. É muito instigante, interessante. Todo mundo devia ler esse livro.

 

Folha — Concordo.

Chico — Assim como, na literatura, todo mundo devia ler o Guimarães Rosa. Pelo menos, “Grande Sertão: Veredas” (de Guimarães Rosa).

 

Folha — “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.

Chico Alencar — Pois é. Tem muita coisa que nos acrescenta. Mas eu entendo que é uma característica do ser humano pensar um modelo de sociedade, e isso não deve ter o elemento da seita como crença, como quase uma religiosidade. Mas, sim, como uma concepção, que é racional, e uma aposta de construção de um sistema, na boa-fé, se quiser usar algum elemento de seita, de que ele pode reduzir a desigualdade, a infelicidade de grupos e classes, promover mais justiça. Engraçado que ambos os sistemas se dizem ontológicos, isto é, inerentes à condição humana.

 

Folha — Daí, a ordem sobre-humana.

Chico — Daí, a seita inclusive. O capitalismo é inerente ao nosso estímulo. Sem o êmulo da competição, a gente não avança. E o socialismo fala da vocação para a fraternidade, para a solidariedade. Eu acho que isso é um tema em debate. O que vai resolver não é a afirmação das convicções, simplesmente, mas a prática concreta. Eu continuo apostando na possibilidade de a gente construir um sistema da socialização dos meios de governar, o que significa democracia plena, e dos meios de produzir. Mas o ser humano vai ter que avançar muito em relação a isso. E, de fato, as religiosidades se misturam com as nossas concepções econômicas, políticas e nosso sentido de vida. Tem muito ateu que não sabe, mas é mais religioso do que os que professam determinada crença. E aí o velho (Karl) Marx (1818/83) continua atual. Acho-o importante. Não é só o Harari que atualiza um monte de coisas. O Marx, sobre a religião, dizia o seguinte, olha que coisa bacana: “Religião: suspiro da criatura oprimida, espírito de uma situação sem espírito, coração de um mundo sem coração, ópio do povo”. A esquerda laica e ateia só fala dessa última, “ópio do povo”. Mas, olha, eu não sou “drogadito” e cada vez bebo menos, até por questões de saúde. Mas imagino que um opiozinho de vez em quando, não viciado, deve ser bom. Você ter uma coisa onírica e tal. Agora, “coração de um mundo sem coração”, “espírito de uma situação sem espírito”, isso é muito bacana. O ser humano vive esse combate entre as trevas e a luz. Se ele consegue avançar, enxergar esperança e solidariedade pela religião, pela crença, inclusive, em um modelo econômico e político, tudo bem. O problema é você querer eliminar o outro fisicamente em função disso. Nesse sentido, eu sou pacifista.

 

Folha — É porque parece vivemos uma espécie de Cruzada no Brasil, entre fiéis e infiéis ideológicos. Nesse sentido é que levantei o Harari.

Chico — Tem muita gente que diz, e eu discordo disso, que esquerda e direita já acabaram. O problema é o modo como você se apropria do seu ideário. O próprio Safatle, em um artigo recentíssimo lá na Folha (de São Paulo), ele escreve toda sexta-feira lá, falava que a disputa de ideias e a divergência não podem significar querer a eliminação física do outro. “Então, vou te matar.” A não ser em conjunturas insurrecionais, que aí tudo sai do controle. Mas, quase sempre, uma conquista do poder pela força, ainda que de uma massa armada, gera novas tiranias. A história tem mostrado isso com muita frequência.

 

Folha — O outro historiador que eu queria lembrar, uma referência do século XX, é o francês Fernand Braudel (1902/85). Ele tem uma história interessante com o Brasil, onde participou ainda novo da fundação da USP e, depois, voltou à França na II Guerra. Preso pelos alemães, ele escreveu na cadeia o livro “O Mediterrâneo no tempo de Felipe II”, onde criou o conceito das temporalidades históricas: curta, média e longa. Passada a longue durée de Braudel, como acha que os pósteros vão olhar para os brasileiros de hoje?

Chico Alencar — O Eric Hobsbawm (1917/2012) faleceu há uns dois anos…

 

Folha — Outro historiador importante do século XX.

Chico — Muito importante. Ele falava do longo século XX, da revolução, da transição do agrário para o urbano como uma das coisas mais marcantes da humanidade. Os processos históricos, para falar de longa duração, não têm o ritmo da nossa ansiedade. O nosso tempo de vida é muito mais curto do que os processos históricos. Isso, a gente só começa a perceber e incorporar com o tempo de vida mesmo. “Não se afobe, não, que nada é para já.” Eu já não tenho nenhuma aspiração de ver o mundo muito melhor do que esse em que eu vivo para os meus filhos, talvez, muito menos para os meus netos, que eu já tenho cinco. E as mudanças mais profundas não são conjunturais. O Brasil está vivendo um tempo muito movediço. É impressionante. Cada semana, e já faz tempo, talvez desde 2013, acontece uma coisa inesperada. Nós temos, no nosso mandato de deputado federal, um bom hábito de fazer seminários. Mergulhar. Sai a equipe e fica três dias fazendo análise de conjuntura. Nós fizemos um, no início do ano do impeachment da Dilma (2016). Depois, eu estava compulsando lá tudo o que a gente anotou, as conclusões. Não tinha possibilidade de impeachment da Dilma, embora houvesse pedidos. E nem mesma a prisão do Cunha. Mas tudo isso é mudança conjuntural. As mudanças estruturais são essencialmente culturais, como Renascimento, como o próprio processo de globalização. As mudanças políticas, às vezes, são muito frágeis. Têm avanços, recuos. Então, eu acho que a gente tem que aprender isso, embora isso não possa significar acomodação, desistência. Ah, então, como nada vai acontecer de substancioso, eu não vou lutar também. Não. Tem que lutar. A gente tem que acelerar a roda da história, mesmo que ela seja mais lenta, estruturalmente, do que a gente imagina. E, às vezes, até estejam rodando ela para trás.

 

Folha — Mas como acha que os pósteros vão olhar para a gente?

Chico — Ah, sim. Olha, talvez, como uma geração que se perdeu nas suas próprias contradições. E que houve gente sincera lutando por um mundo melhor, mas que, no geral, não teve muito êxito. Eu sou cristão de formação. Aí, eu fico com outro filósofo. Não era historiador, mas um grande filósofo francês católico, da linha progressista, chamado Emmanuel Mounier (1905/50). Ele falava o seguinte: “quando não restar possibilidade nenhuma de sucesso, resta-nos testemunhar”. Não se perde a vida, inclusive na percepção histórica, daqueles que deram grande testemunho. Você pode ver que os grandes ícones da humanidade, porque a gente acaba tendo os nossos mitos, são derrotados historicamente. Não estou falando nem de Jesus Cristo, não, que é o suprassumo da derrota. Aí, o mito, toda religião é um mito, da ressurreição e da Páscoa. Mas Luther King foi derrotado. Gandhi foi derrotado. Malcolm X, Che. Tem para todo gosto. Conjunto de fracassados ou com vitórias que, às vezes, não duraram. Revoluções que se traíram. Eu acho que é assim, mas isso não deve fazer a gente desanimar. Senão, piora.

 

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Publicado hoje (10) na Folha da Manhã

 

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