Artigo do domingo — Tragédias do homem sobre o próprio homem

 

Capa da Folha de 2003 estampa o Paraíba tingido de negro pelo material vazado de uma barragem rompida em Cataguases (Reprodução)

 

 

Como nossos pai

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

Foi em maio de 1982. Ainda vivíamos numa ditadura militar, negada por quem hoje governa o Brasil pelo voto. Naquela época, não havia eleição direta a presidente, internet, computadores pessoais ou telefones celulares. Ter um videogame era símbolo de status reservado às poucas crianças cujos pais tivessem viajado ao exterior. E se lembrado de agradar os filhos.

Depois que a Companhia Paraibuna Metais despejou chumbo, cádmio e zinco em Juiz de Fora, no rio Paraibuna, afluente do Paraíba do Sul, quem teve que sair de Campos foram as crianças. Com a suspensão da captação d’água por 12 dias, as aulas em todas as escolas da cidade foram interrompidas. Os pais que tinham a mínima condição financeira e parentes morando em cidades não afetadas enviaram seus filhos para longe do perigo tóxico do, até então, maior desastre ecológico do Brasil.

Com 9 anos, cursando a antiga 4ª série do curso primário na Escola Santo Antônio, hoje Hortifruti da rua Formosa, eu fui uma dessas centenas, talvez milhares de crianças. Peguei um ônibus da 1001 até Niterói, onde meu tio Luiz Edmundo Barbosa, irmão caçula do meu pai, residia e reservou um quarto só para mim. O impacto da independência para quem sempre dividira o mesmo aposento com o irmão um ano mais novo, foi enorme.

A sensação de liberdade foi ampliada pelo fato de tio Luiz gentilmente ter disponibilizado um aparelho de TV só para mim. E, diante dela, varar as madrugadas assistindo aos filmes no Corujão da Rede Globo, sem dever de casa ou obrigação de ir à escola. Ainda se vivia num tempo em que a maioria dos lares brasileiros só tinham uma TV, de uso coletivo, geralmente na sala.

Era uma situação de exceção, então pouca compreendida por quem se adaptou sem maiores traumas à novidade momentânea. Ainda assim, foi difícil esquecer aquelas filas de crianças se despedindo dos pais, nas portas dos ônibus na Rodoviária Roberto Silveira. Tomavam destinos variados para longe do perigo que atingiu diretamente meio milhão de pessoas. Sem contar os danos à fauna e à flora correndo como veneno nas artérias dos rios.

A dimensão da tragédia humana só veio cinco anos depois, em 1987. Estimulado por aquelas duas semanas com uma TV exclusiva e sem hora para acordar, o hábito de assistir filmes se tornaria adicção. E levou a um lançamento daquele ano nos cinemas: “Esperança e Glória”, de John Boorman. O diretor inglês transformou em filme sua experiência pessoal como menino também de 9 anos, durante a II Guerra Mundial (1939/45). Com Londres arrasada pelos bombardeios da Alemanha nazista, as crianças da capital britânica também foram mandadas para casas de parentes morando longe dos seus pais.

Já como adolescente de 15 anos, o filme remeteu naturalmente à criança “exilada” em Niterói. E permitiu compreender como os desastres na natureza e as guerras se equivalem na capacidade de mudar radicalmente, do dia para a noite, a vida das pessoas. Quando não terminar com elas. Campos tem hoje seus refugiados sírios e venezuelanos como exemplos à luz do sol real.

Adulto de 30 anos, fui como jornalista no helicóptero que saiu da planície goitacá rumo a Cataguases, em Minas Gerais, no começo de abril de 2003. Em 29 de março daquele ano, um reservatório de lixívia negra da indústria Cataguases de Papel se rompeu, atingiu o córrego Cágados e, dele, o rio Pomba, outro afluente do Paraíba. A captação d’água em Campos também teve que ser interrompida por 10 dias.

Na aeronave, além do piloto e de mim, estavam o promotor estadual Marcelo Lessa, os então presidente da Câmara de Campos, Nelson Nahim; secretário municipal de Meio Ambiente, Sidney Salgado; e o delegado adjunto da Polícia Federal de Campos, chamado Adriano, cujo sobrenome não lembro. Quem também estava a bordo era o repórter-fotográfico Diomarcelo Pessanha.

Como tive forte enjoo durante boa parte do voo, meu parceiro na cobertura jornalística só revelou depois seu receio: “Se você vomitasse, não iria ser em cima do piloto, do vereador, do secretário ou do delegado. Por questão de hierarquia, ia ser em cima de mim”.

A contaminação dos metais tóxicos causados pela Paraibuna em 1982 era mortal, mas invisível a olho nu. Embora menos danosa a homens, animais e plantas, por ser material orgânico basicamente composto de lignina e sódio, todos os campistas puderam ver quando a lixívia negra desceu o Paraíba no começo de abril de 2003. Também pude estar presente em Atafona, quando no dia 4 daquele mês a mancha escura sangrou pela foz do Paraíba e enegreceu até o oceano Atlântico.

Religioso ou não, era inevitável ver aquilo e associar à praga com que o Deus do Velho Testamento atingiu o rio Nilo do Egito Antigo. O que há de mais profano na relação do homem com a natureza se assemelhava a um castigo divino. Lembro que comentei isso com quem estava por acaso ao meu lado, em Atafona, assistindo a tudo também estupefato. Era o também jornalista e então deputado federal Fernando Gabeira.

Naquela viagem de helicóptero ao reservatório rompido, onde acabamos cruzando com a equipe do Globo Repórter, descobri que o próprio nome da cidade mineira revelava suas artérias ancestrais e comuns com Campos. Cataguases é uma variante de goitacazes. Antes da chegada do europeu à América, os índios já se locomoviam pelas mesmas vias fluviais em que depois deixaríamos nossas digitais impressas com lixívia negra.

Até ontem, a catástrofe do rompimento da barragem da mineradora Vale SA, em Brumadinho, em 25 de janeiro, tinha contabilizado 121 mortes e 226 ainda desaparecidos. Nas páginas 6 e 7 desta edição, uma matéria completa e concisa da jornalista Camilla Silva conta não só a tragédia mineira, que repercutiu por todo o mundo sem ter aprendido nada com Mariana, como as que já se abateram ao longo dos anos sobre Campos.

Na sexta (01) foi divulgado um vídeo do momento do rompimento da barragem em Brumadinho. Diante de pessoas, prédios, automóveis e trens engolidos pelo tsunami de lama, inevitável reconhecer nos olhos dos espectadores o mesmo medo de pais, 37 anos antes,  obrigados a mandar seus filhos para longe de casa.

Hoje questionada por quem acha que a Terra é plana, não crê que o homem foi à Lua, ou que nosso pequeno planeta azul gire em torno do Sol, se a história da evolução das espécies ensina alguma coisa é que não há perdão para quem é incapaz de aprender com os próprios erros.

 

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Este post tem 5 comentários

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Cesar,

      Grato pela generosidade.

      Abç!

      Aluysio

  1. Altair

    Caro Aluysio, apesar de a “grande mídia” apresentar Fabio Schvartsman como presidente da Vale, o empresário BENJAMIN STEINBRUCH É O VERDADEIRO DONO DA EMPRESA, a atual diretoria é completamente subordinada às suas ordens. Steinbruch é o grande acionista privado proprietário da Vale do Rio Doce.

    A Vale que continua extraindo minério de ferro e outros minérios altamente valorizados clandestinamente em Minas Gerais, as barragens são apenas onde se depositam junto com a água os resíduos dos produtos químicos usados para separar o ferro e outros minérios ainda mais nobres estratégicos, como Nióbio, que são extraídos do subsolo nacional em uma sangria que há dura décadas.

    Com apenas 100 gramas de Nióbio, no meio de uma tonelada de aço, a liga se torna muito mais forte e maleável. Carros, pontes, turbinas de avião, aparelhos de ressonância magnética, mísseis, marcapassos, usinas nucleares, sensores de sondas espaciais… praticamente tudo o que é eletrônico, ou leva aço, fica melhor com um pouco de nióbio. NÃO POR ACASO, AS MINAS (PROPRIAMENTE DITAS) SEQUER SÃO MOSTRADAS NA TV, COM OS CAMINHÕES LOTADOS DE MINÉRIOS, OS NOTICIÁRIOS APENAS MOSTRAM A LAMA DO REJEITO E O RESGATE DAS VÍTIMAS.

    Isto porque a mineração representa quase 10% do PIB de Minas Gerais, responsável por mais da metade da produção de minerais metálicos do país. Por ano, cerca de 300 municípios mineradores despejam no mercado quase 200 milhões de toneladas de minério de ferro. Os lucros privados da Vale geram realidade de risco constante no plano socioambiental.

    De acordo com o Banco de Dados de Barragens da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), MINAS POSSUI 698 BARRAGENS DE REJEITOS MINERAIS, SENDO QUE DUAS DEZENAS DELAS NÃO TÊM ESTABILIDADE GARANTIDA. Por essa razão, a maioria dos mortos são funcionários da Vale e terceirizados, sendo Benjamin Steinbruch o grande assassino responsável pela tragédia humana e ambiental de Brumadinho. 413 dos seus funcionários estão desaparecidos, a maioria destes provavelmente encontra-se soterrada pela lama de rejeito de minério de ferro ou dentro da própria mina.

    É preciso que seja feita uma revisão do método para classificação de risco pelos órgãos reguladores e fiscalizadores como o IBAMA que não sejam controlados pela influência das grandes mineradoras. Em pouco mais de 3 anos, 2 complexos mineradores com barragens classificadas em baixo risco tiveram rompimentos desastrosos, gerando centenas de vítimas.

    Além disso, FAZ-SE NECESSÁRIO REVER O ALTEAMENTO DE BARRAGENS A MONTANTE, UM MÉTODO ANTIGO, SIMPLES E ECONÔMICO PARA AS MINERADORAS, MAS QUE ENVOLVE GRANDES RISCOS, INCLUSIVE ASSOCIADOS À PERDA DE VIDA HUMANA. Afinal, outras barragens da empresa podem romper a qualquer momento, causando mais mortes e destruição.

  2. Adriana Lima

    Parabéns pelo texto, Aluysio ! Não dá pra acreditar que repetimos os mesmos erros!

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Adriana,

      Mineiro célebre, Juscelino Kubistchek advertia: “O sábio só comete erros novos”.

      Abç e grato pela generosidade!

      Aluysio

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