Nego, logo existo — RJ, URSS, II Guerra, progressista, liberal, neostalinismo e Caetano

 

 

Nego, logo existo

 

Umberto Eco

Não há novidade em lembrar o falecido filósofo, semiólogo e romancista italiano Umberto Eco: “O drama das redes sociais é que elas promoveram o idiota da aldeia a portador da verdade”. O novo é constatar que o fenômeno da idiotização digital, representado pelo negacionismo ideológico, atinge também os pensantes da aldeia. E a causa não são nem as redes sociais, mas a acefalia da polarização política brasileira atiçada por elas e nelas reproduzida.

Os exemplos, como de hábito, são opostos e complementares. Um professor universitário progressista, após o afastamento de Wilson Witzel do governo do Estado do Rio, reproduziu nas redes sociais um meme. E nele se ufanou de que os únicos governadores fluminenses não afastados ou presos por corrupção, após a redemocratização do país em 1985, seriam o pedetista Leonel Brizola e a petista Benedita Silva. Ambos, por óbvio, de esquerda.

O meme não foi desonesto porque esqueceu que a aliança entre PDT e PT que governou o Estado do Rio acabou desde 2000. Foi quando Brizola chamou Benedita de “Rainha de Sabá”, pela fome de cargos públicos da petista. Ela era vice-governadora do então pedetista Anthony Garotinho. A quem sucedeu no Palácio Guanabara por menos de um ano, após o político de Campos se candidatar e perder o pleito presidencial de 2002. Mas, naquele ano, fez Rosinha governadora no 1º turno, dando uma coça eleitoral nos ex-aliados Bené e PT.

 

Benedita Silva, Leonel Brizola, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral em 1999, celebrando na Alerj a aliança política que chegava ao poder no Estado do Rio (Foto: André Durão – AE)

 

Como Garotinho e Rosinha, além dos também ex-governadores do Rio Moreira Franco, Sérgio Cabral e Pezão, foram todos presos por corrupção, o meme do professor universitário queria vender Brizola e Benedita como exceções de honestidade. Por quê? Para provar que a esquerda tupiniquim, marcada pela corrupção endêmica dos 13 anos de governo do PT no Brasil, seria uma exceção na corrupção endêmica do Estado do Rio.

Marcello Alencar

Ocorre que o meme sobre honestidade, reproduzido pelo professor universitário progressista, foi desonesto. Porque sonegou que Marcello Alencar, governador do Estado do Rio de 1995 a 1998, nunca foi afastado ou preso por corrupção. Só que ele era do PSDB, que rivalizou a liderança da polícia nacional com o PT dos anos 1990 até 2018, quando Jair Bolsonaro se elegeu presidente. E a quem fica mais difícil acusar pelo uso de fake news, quando também se usa fake news para corromper a verdade por prisma ideológico.

Do professor universitário progressista, chegamos ao estudante universitário liberal. Que faz comentário na linha do tempo de outrem, em postagem sobre a canalhice que habitou tanto o vídeo cafona de 7 de setembro gravado pelo dublê de ex-Malhação e secretário bolsonarista de Cultura, quanto a votação de… Benedita. Agora como deputada federal, ela votou pela isenção fiscal de R$ 1 bilhão às milionárias igrejas evangélicas brasileiras. Com o apoio de ateia Jandira Feghali e toda a bancada do PCdoB, puxadinho do PT em seus 13 anos no poder.

 

Caetano Veloso e Jones Manoel (Foto: Facebook)

 

Domenico Losurdo

Lógico, o liberal gostou. E quis abrir o leque de como a esquerda pode ser ainda pior. Para tanto, lembrou que Caetano Veloso, no programa do Pedro Bial, deu luz nacional a um jovem historiador e youtuber neostalinista, Jones Manoel. De quem o jovem liberal printou e disparou uma série de postagens pré-Muro de Berlim, que a reboque do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo buscavam relativizar atrocidades como os gulags e os expurgos do soviético Josef Stálin, ou a Revolução Cultural do chinês Mao Tsé-Tung.

Como deveria ser a qualquer um que sobrepõe humanismo a dogmas políticos anacrônicos, comentado e comentarista concordaram. Até que o primeiro ressalvou um fato histórico: a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi a protagonista da derrota da Alemanha nazista na II Guerra Mundial (1939/1945) na Europa. Aí, pronto! Quem descia o malho nos dogmas tolos do jovem marxista, hasteou a tolice juvenil dos seus. Mais ou menos como a bandeira vermelha com a foice e o martelo sobre o Palácio do Reichstag em Berlim, a 2 de maio de 1945. Só que sem o mesmo merecimento ou verdade.

 

Reichstag sob a bandeira dos conquistadores de Berlim (Foto: Yevgeny Khaldei)

 

Talvez sem nunca ter lido um livro sobre o tema, o jovem comentarista liberal pediu fontes. E o comentado listou quatro grandes historiadores, em obras emblemáticas sobre a II Guerra, inclusive aquela considerada a biografia definitiva de Hitler. Que foram contrapostas por uma única fonte: um artigo buscado no São Google. Que não contesta o protagonismo da URSS na derrota da Alemanha. Só pretende relativizar esse papel na circunscrição ao campo industrial do que se deu no campo de batalha. Mas sem nem se dar ao trabalho de mencionar o acordo de Bretton Woods de 1944, tiro de misericórdia econômico na nuca da Alemanha nazista, ao fixar o dólar como moeda para transações internacionais.

 

 

A questão é: a URSS de Stálin teria vencido a Alemanha de Hitler sem a ajuda material dos EUA de Roosevelt e da GBR de Churchill? E, sobretudo, sem que a aviação destes dois tivesse esgotado a indústria nazista em bombardeios aéreos? É provável que não. Mas, como em toda tese, há a antítese: EUA e GBR teriam vencido a Alemanha sem a URSS? Se esta não tivesse sido traída e invadida em 1941 por Hitler, que transformou sua cúmplice na invasão à Polônia de 1939 em sua inimiga mais intestina? Também é provável que não. E que, se não fosse isso, o alvo da invasão alemã seria a GBR, que em 1940 planejava exilar sua família real no Canadá.

 

Na Teerã de novembro de 1943, Stálin cobrou de Roosevelt e Churchill uma nova frente contra a Alemanha na Europa, que resultaria no Dia D na França, 16 meses após a Batalha de Stalingrado

 

Em 31 de janeiro de 1943, magro e abatido, o marechal alemão Friederich Paulus chega ao QG soviético em Stalingrado para se render

Como “se” em História não existe, nunca saberemos. Embora sejam conjecturas instigantes, em termos práticos uma pergunta é tão inútil quanto a outra. O fato em síntese é que, com a atuação coadjuvante de EUA, GBR e até o Brasil de Getúlio na Frente Ocidental, coube à URSS virar a maré da II Guerra na Europa. Que era vencida pela Alemanha até a Batalha de Stalingrado, definida pelo Exército Vermelho em fevereiro de 1943. Só depois dela, em agosto do mesmo ano, se deu a Invasão da Itália, primeiro desembarque de sucesso dos EUA e GBR no continente europeu, que só em junho de 1944 promoveriam o Dia D na França. Após arrombar o cadeado alemão em Stalingrado 16 meses antes, a URSS só pararia em Berlim.

Mídia mais influente nos EUA do seu tempo, a revista Life exibe na sua capa, em 31 de julho de 1944, a foto do marechal russo Georgy Zhukov

Sobre o papel particular do marechal russo Georgy Zhukov em batalhas como as de Stalingrado e de Kursk, maior conflito de blindados da história, empurrando a Frente Oriental até a capital da Alemanha, levando Hitler ao suicídio a 30 de abril de 1945 e seus sucessores à rendição incondicional em 8 de maio, o comandante da Frente Ocidental da II Guerra, general dos EUA e depois seu 34ª presidente, Dwight “Ike” Eisenhower testemunhou: “To no one man do the United Nations owe a greater debt than to Marshal Zhukov” (“A nenhum outro homem as Nações Unidas têm uma dívida maior de gratidão do que com o marechal Zhukov”).

Com os fatos e suas fontes primárias traduzidos em números, o protagonismo da URSS no maior conflito armado da humanidade é ainda mais impressionante. Se em todo o mundo, incluindo Ásia, África, Oceania e litoral das Américas, a II Guerra tirou cerca de 80 milhões de vidas humanas, a URSS perdeu, só ela, mais de 26 milhões. Que cobrou ao matar mais de 4,4 milhões de militares alemães, entre os cerca de 5,5 milhões de soldados nazistas que perderam a vida entre 1939 e 1945. A ateia URSS encomendou a alma de 80% dos soldados mortos a serviço da suástica na II Guerra. Foram necessários todos os demais Aliados juntos para dar cabo dos outros 20%.

 

Atacante André Schürlle comemora o gol que fechou os 7 a 1 da Alemanha contra o Brasil na Copa do Mundo, em 8 de julho de 2014, no Mineirão (Foto: Matin Rose – Getty Images)

 

Você se lembra dos 7 a 1 da Alemanha sobre o Brasil, no Brasil, na semifinal da Copa do Mundo de 2014? Pois é. Contra a mesma Alemanha, das mortes militares a ela impostas na II Guerra, o placar macabro entre a URSS e todos os demais Aliados foi 8 a 2 para os soviéticos. Goleada que revela uma tragédia humana sem precedentes. Mas cujos números finais não se alteram pela indústria que fabricou as bolas, os uniformes e as chuteiras do mesmo adversário.

 

Com tecnologia própria, a URSS desenvolveu os foguetes Katyusha, apelidados pelos alemães de “falo de Stálin” e montandos sobre os caminhões Studebaker, fabricados e fornecidos pelos EUA

 

Se a questão fosse meramente industrial, alguém poderia lembrar que a URSS, com os mísseis Katyusha tão temidos pelos soldados alemães, desenvolveu por conta própria sua tecnologia de foguetes na II Guerra. Com a qual depois lançaria o primeiro satélite em 1957 e o primeiro homem ao espaço, em 1961. Enquanto os EUA, a despeito de terem desenvolvido a bomba atômica na II Guerra, roubaram ao final dela o engenheiro Wernher Von Braun dos nazistas. E, com ele, criaram a Nasa. Mas sem o trabalho escravo que o cientista membro da SS selecionou pessoalmente à construção dos foguetes V-2, para Hitler aterrorizar Londres com sua “arma secreta”.

 

Filiado aos nazistas desde 1938, ano anterior à II Guerra, Von Braun sorri ao lado dos seus pares fardados, enquanto usava trabalho escravo para construir os foguetes V-2, com os quais levou morte e destruição a Londres

 

Assim, se as baterias de foguetes Katyusha da URSS eram montadas na II Guerra sobre os caminhões Studebaker fabricados e fornecidos pelos EUA, à bandeira destes fincada no solo da Lua em 1969, no projeto Apolo desenvolvido por Von Braun para a Nasa, faltaram a suástica e o singelo adendo entre listras e estrelas: “With technology from Nazi Germany” (“Com tecnologia da Alemanha Nazista”). Morto então há 24 anos, Hitler não pôde cobrar a patente.

 

Von Braun coordenando o lançamento da Apolo 11, quando a tecnologia nazista levou os EUA ao solo da Lua, cumprindo a promessa de John Kennedy, a quem o ex-oficial da SS serviu e sobreviveu, assim como a Hilter

 

A tecnologia nazista definiria a corrida espacial. Como a Guerra Fria entre os vencedores do nazifascismo seria vencida pelo capitalismo. Que sofreria adaptação antiliberal pelo Estado a partir de 1979, com a qual a China sob controle do Partido Comunista resgataria a posição de gigante mundial que era sua desde a Antiguidade. E retomou em movimento geopolítico mais importante, embora menos famoso, que a queda do Muro de Berlim em 1989, ou a dissolução da URSS, em 1991. Como a Revolução Liberal Inglesa do séc. XVII teve reflexos estruturais mais profundos no mundo, mas foi e é menos comentada que a Revolução Francesa do séc. XVIII.

 

Quando seu grande adversário na Ásia era o Império do Japão, os EUA viraram a Guerra do Pacífico ao seu favor em junho de 1942, na Batalha de Midway, paralelo da Batalha de Stalingrado na Europa

 

Outra ironia se deu quando o comentarista liberal tentou questionar o papel protagonista da URSS no palco europeu da II Guerra, lembrando que o protagonismo na derrota do Império do Japão, aliado da Alemanha, foi dos EUA. Com o que o comentado concordou, lembrando que a Batalha de Midway marcou a mesma virada na Guerra do Pacífico da Batalha de Stalingrado, na Europa. Mas, quem pregou apego à ciência, a partir de única fonte, ignorou a contradição “causal” do próprio argumento. Como o neostalinista lembrado por Caetano no Bial. Para um, o protagonismo histórico só vale se liberal. Para o outro, todo o liberal é um assassino.

 

 

Seja na ausência seletiva do tucano Marcello Alencar entre os governadores do RJ que não foram afastados ou presos por corrupção, seja na negação seletiva do protagonismo da URSS comunista na derrota da Alemanha nazista na II Guerra, o professor universitário progressista e o estudante universitário liberal são polos opostos, mas complementares, do mesmo fenômeno. Mais experiente, o professor pelo menos não contestou quem acusou a fake news que reproduziu. E não se deu ao trabalho de questionar o inquestionável. Sobretudo depois que o próprio Facebook classificou sua informação sobre honestidade como falsa.

 

Vultos da República do Brasil, Ruy Barbosa e Ulysses Guimarães

 

Patrono dos advogados brasileiros, Ruy Barbosa é costumeiramente lembrado pela sentença: “Contra fatos não há argumentos”. Pai da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães advertia: “Nunca subestime o fato; sua excelência, o fato”. Felizmente, para os dois vultos da nossa República, eles não viveram no tempo das redes sociais. Nele, o negacionismo dogmático emburrece até os inteligentes da aldeia. Como parece acontecer com Caetano.

 

 

Publicado hoje (19) na Folha da Manhã

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Pedro Ribas

    Muito bom o artigo. Só acho que gastou muita munição na 2ª Guerra Mundial para quem só sabe dela pelo Google. Só fiquei curioso para saber que são o professor e o aluno… kkkkkk

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Pedro,

      Apesar dos dogmas políticos, o professor é um grande intelectual e homem de bem. Já o aluno só sabe da II Guerra pelo São Google e os filmes de Hollywood. E, com complexo de Jimmy Neutron, diz que é… ciência. Estuda Direito e parece ter conhecimento em sua área. Em História, porém, é um dromedário. Acha que repetir pedantismos como “epistemológico” e “causal” lhe darão a cultura que não tem. Masturba conceito fálico de Freud, mas é impotente para distinguir psicologia de psiquiatria. Desonesto, é capaz de roubar e vender como sua a opinião sobre Churchill que o Jones Manoel deu em entrevista a Caetano, enquanto malha Jones Manoel e Caetano. É um arrivista tolo, arrogante, dogmático, ressentido, megalômano, acometido de ideação persecutória e chato, muito chato. Como homem, bem diferente do professor, o estudante é só um moleque. E, por desvio de caráter, talvez envelheça assim.

      Abç e grato pela colaboração!

      Aluysio

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