“um raio de sol
oblíquo
foi o obstetra”
(Aluysio Abreu Barbosa)
ׅ“Ali, na palavra — esperma do imaginário — em
reverberação do ciclo cósmico, eu a
encontrei na vida de seu sêmen nascida”
(Arlete Parrilha Sendra)

Sem moldura
Por Arlete Parrilha Sendra
No mundo de hoje, há lugar para a poesia? De que falamos quando falamos poesia? Ou falamos em poesia? É algo conceituável? Onde podemos encontrá-la? Mas o que é poesia? Será ela um jeito próprio de sentir? Ou um saber ora convencional, ora arbitrário? Será ela desdobramento de um real? Ou será nascitura do imaginário? Será a matéria prima da vida? Será um construto natural que está presente na ordem empírica do mundo?
Não a procurei no pensamento platônico, aristotélico e estoico. Também não a procurei em Dante, em Homero, em Cervantes. Casualmente, Pessoa, Drummond e Joel Mello estavam em férias minhas, enquanto um pânico se espraiava no compromisso com o tempo. Revi guardados. E foi ali sobre minha mesa, solta à deriva dos ventos, sem molduras que roteirizam o pensar, que enquadram o imaginário que eu a vi em antológicos bailados e cores:
“criados como crianças
azuis
por parte de céu
e mar
bodiões bailavam cirandas
ciosos de mim”.
Pensei neste mim que traz meus “eus” dentro dele e, gramaticalmente, “mins” deveria ser. Pensei em bailados, balés, baianas coreografando em sons de “azuis céu e mar” as expressões líquidas do tempo.
E foi ali, sobre minha mesa, que ela estava, em imaginário passaporte, recompondo, descompondo ancestrais semânticas presentes nos murmúrios do viver.
Ali estava ela! Desconstruindo limites não dialogais, em paradoxais reticências, mostrava-se por tortuosos caminhos, vagueando por virgens territórios.
Ali, na palavra – esperma do imaginário – em reverberações do ciclo cósmico, eu a encontrei, na vida que de seu sêmen nascera,
“na babel sustenida
e (n)o estalo das vagas
no palato das pedras
vorazes por algas”.
E assim, eu a fotografei.
“as tartarugas, não
— distintas dos bodiões
elas eram budistas:
pastavam serenas
arando mesuras
com nadadeiras espátulas”.
Vistas como testemunhas e mensageiras das águas dos tempos, como se cosmóforos fossem — e não são? — tartarugas, em linguagem plasticamente poética, nos remetem a antiguíssimos muito antiguíssimos, enquanto mito da representação do universo. E enquanto mito, metaforiza figuras, fatos e ações que, em abstração, falam de um ser, humano ser, angustiado e solitário, vivendo dentro de um universo em movimento em que se acentuam as relações mítico-poéticas, mítico-pictóricas, mítico-musicais. Mítico-solitárias. Mítico aluysianas.
Viageiro dos tempos, escrutinador dos imersos e submersos amanheceres, em aparente descompasso métrico, mas intenso de ritmo, o poeta revisita um tempo outrora, prenhe de angústias e de esperanças em sua não-irreal ilusão dos sentidos. E penetrando em um outro tempo, encontrou raízes que conscientes ou inconscientemente, consistentes ou inconsistentes modelaram o homem, único mamífero vertical, único animal racional e, complementarmente, um ser afetivo. Um ser sentimental. Um ser que conhece a dor de ser só. Ou de só ser.
“Abr’olhos!”, nos disse o poeta.
E não é, apenasmente, um verso poético. Traz geografias em seu semântico poetar. Nos remete a futuros — hoje amanhãs — desdobramentos de ontens não agendados.
“Abr’olhos!”. Há etcéteras a serem vividos,
E nos remetem ao apeiron, princípio indeterminado onde tudo começou, onde tudo está junto e misturado. E nos remetem às paisagens arcoirizadas e virgens que se desdobram ad infinitum.
E foi lá!!!!
“abdicado das gueixas
por iemanjá como quenga
com opacas lentes, — … guelras na vista — que o poeta acredita no renascer em novo útero.
E foi lá!!! Em busca contínua do mito da palavra, em busca de sua função de palavra ser, em busca dos primórdios fundantes da beleza, que o poeta se fez pintor:
ׅ
“colori os corais
corei coralinas”.
E lá!!! Em sonambular viver, a poesia se foi fazendo chegante:
“e cruzei com sereias
que deram cria”.
Se não aceitarmos as molduras que enquadram nosso pensar, que conformam e limitam nosso imaginar, poderemos enfatizar que o mito prefacia o hoje e tem seus registros em cartórios da infância dos tempos.
Abr’olhos!
Embalados por uma partitura mítico poética, em descompassados compassos entre versos e estrofes, “bodiões e bailarinas” embaralharam ritmos convencionais em registro de um tempo em sempre outro tempo ser, iluminados e iluminando
“em luzes adivinhas
ao há de vir”.
Instrumento do resplandecer da linguagem, fecundada pela visão mítico-poética aluysiana, a palavra metaforiza vidas que sinalizam os tempos de quando o depois chegar. E o depois chega. E o depois chegou.
E arranca as máscaras dos tempos primevos,
“abdicado das gueixas
por iemanjá como quenga”,
o poeta ouve vozes vindas de tempos mitológicos, paradoxalmente, na língua e compreensão dos modernos tempos.
Escuta sons que segredam sentires. Ternizam e externizam lembranças.
E foi aí e só aí que conceituei poesia:
“um raio de sol
obliquo
foi o obstetra”.
POEMA DE ALUYSIO ABREU BARBOSA(*):
bodiões e baianas
criados como crianças
azuis
por parte de céu
e mar
bodiões bailavam ciranda
ciosos de mim
seus bicos de papagaio
imitavam silêncios
na babel sustenida
e o estalo das vagas
no palato das pedras
vorazes por algas
as tartarugas, não
— distintas dos bodiões
elas eram budistas:
pastavam serenas
arando mesuras
com nadadeiras espátulas
abr’olhos!
advertiam os lusos
em luzes adivinhas
ao há de vir
abdicado das gueixas
por iemanjá como quenga
vesti guelras na vista…
colori os corais
corei coralinas
e cruzei com sereias
que deram cria
um raio de sol
oblíquo
foi o obstetra
atafona, 29/01/07
(*)Poeta, jornalista e membro da Academia Campista de Letras (ACL)

 
								 
															 
															
