
— E aí? Rolou uma química? — inquiriu Aníbal, já sentado à mesa do boteco, copo americano de cerveja à mão e quase engasgando entre riso e lúpulo.
— Será que Trump cedeu ao decantado carisma de Lula nos segundos em que eles se cruzaram nos discursos dos dois na Assembleia Geral da ONU? — respondeu Antônio com outra pergunta, antes de sentar e pedir um copo ao garçom.
— Só depois dos dois discursos rolou a imagem de Trump, na antessala do plenário da ONU, conferindo atentamente o discurso de Lula, com tradução em tempo real. Ele ouviu todas as duras palavras do brasileiro sobre a taxação dos EUA pelo mundo e o genocídio do povo palestino promovido dolosamente por Netanyahu na Faixa de Gaza, com apoio dos EUA. Como ouviu que o Brasil não aceita ingerência de poder estrangeiro em sua soberania.
— Sim. E o engraçado é que ao começar a falar do Brasil na réplica do seu discurso longo e auto laudatório, chegou a criticar a suposta perseguição do nosso Judiciário a pessoas e empresas dos EUA. Leia-se as Big Techs e seu gansgsterismo do ódio nas redes sociais. E não deu um pio sobre Bolsonaro. Só depois falou que tinha rolado a tal química com Lula para anunciar o encontro entre ambos.
— Acho que essa química se resume a dois pontos.
— Os dois pontos da borda em que os bolsominions enfiaram os dedos para se virarem pelo avesso? — indagou Antônio, enquanto também se engasgava de riso e cerveja.
— Embora em número menor a cada nova pesquisa, muitos não vão mudar.
— De fato. Primeiro foram as fake news que Trump tinha negado o visto de entrada a Lula nos EUA para falar na ONU. Desmentidos mais uma vez pelo fato, “sua excelência, o fato”, como advertia Rui Barbosa, os minions foram às redes sociais dizer que Trump colocaria Lula em seu lugar. Mas, quando Trump afagou Lula, responderam ao apito de cachorro de Dudu Bananinha para dizer que o brasileiro tinha caído numa armadilha à la Zelensky.
— O que me leva ao primeiro ponto da química.
— Diz aí.
— Estudei no Liceu e tenho muito orgulho dessa formação em escola pública. Que, além da parte acadêmica forte, preparava os adolescentes, nos intervalos entre as aulas, para a vida real sem a nutelagem de hoje. Sempre tinha aquele valentão que tentava intimidar e roubar seu lanche na saída da cantina. Se você aceitasse, teria que comprar dois lanches o resto do ano para conseguir comer um. Mas se encarasse, mesmo que levasse a pior no confronto, não seria mais importunado. Todo tirado a macho de pátio só respeita quem o encara.
— Como Bolsonaro chamando Moraes de “canalha” para depois, na frente dele, pedir desculpas e convidá-lo para ser seu vice? — arguiu novamente Antônio, em outra engasgada de riso e cerveja.
— Trump encarnou Fidel Castro, falou uma hora na ONU e meteu pau em todo mundo. Ele só elogiou dois líderes. Quem foram?
— Além de Lula? Não lembro. Quem foi?
— Lula e Putin. Porque são os dois que encaram Trump. Não aceitam ter o lanche roubado na cara dura. Nunca arregaram para o “valente”. E por isso têm o seu respeito. Esse é o primeiro ponto. E é universal. Vale do Liceu a qualquer outro pátio escolar da geopolítica.
— Tem lógica, sim. E o segundo ponto?
— O segundo ponto foi o empresário que gravou Temer, quando o então presidente disse em 2017: “Tem que manter isso, viu?” Foi o mesmo Joesley Batista que, depois de ser preso naquela confusão, se encontrou com Trump na Casa Branca no início de setembro, antes da química da ONU. E explicou ao Laranjão que se ele continuasse a tretar com o Brasil, a carne do hambúrguer ia ficar mais cara nos EUA.
— E a carne bovina nos EUA já está bem cara.
— No país em que até churrasco de família é com carne de hambúrguer. Gigante do ramo da proteína animal, no Brasil e nos EUA, Joesley falou na língua que Trump entende. E, com ela, também falou bem de Lula.
— Enquanto isso, os “intindidos” de política e até de geopolítica apostam na armadilha em que Trump já humilhou Zelensky aos olhos do mundo.
— Com Trump, nada pode ser desconsiderado. Ele usa o caos como método. E, mesmo que minta como o mesmo pudor com que respira, é um grande comunicador. É como Polônio advertiu sobre Hamlet: “Parece loucura, mas há método”.
— Sim. E, se há método, a loucura é só simulação para se atingir um objetivo pragmático.
— É isso. Mesmo que Trump esteja mais para Iago do que para Hamlet.
— Difícil explicar Shakespeare aos muares posando de “intindidos” em geopolítica das redes sociais.
— Nasceram e morrerão dispostos a entregar o lanche de bom grado. E a ainda agradecerem, usando a bandeira de quem o tomou. Vale a esses pobres coitados a didática de Jim Carville, ex-assessor da campanha de Bill Clinton a presidente dos EUA no início dos anos 90: “É a economia, estúpido!” — parafraseou Aníbal, antes de desviar os olhos ao chão ao lado da mesa e contabilizar nos cascos vazios quantas cervejas tinham rolado até ali.
Publicado hoje na Folha da Manhã.