Gabriel Rangel — Como e quem assume o governo do RJ até 2026
Desdobramentos jurídicos da dupla vacância no Executivo do RJ
Por Gabriel Rangel
Introdução
A estabilidade e a continuidade do Poder Executivo são pilares fundamentais para a governabilidade de qualquer ente federativo. No Brasil, a Constituição Federal e as Constituições Estaduais estabelecem um arcabouço jurídico para lidar com situações de vacância nos cargos de chefia, visando a garantir a transição e o preenchimento das lacunas de poder de forma ordenada e democrática. No Estado do Rio de Janeiro, a possibilidade de dupla vacância nos cargos de governador e vice-governador, seja por renúncia, impedimento ou cassação, suscita uma série de questionamentos jurídicos complexos, especialmente no que tange à sucessão provisória e à modalidade das eleições para o “mandato-tampão”.
Este artigo se propõe a analisar esses desdobramentos jurídicos, considerando as disposições da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Serão abordados dois cenários distintos: 1) a dupla vacância por razões não eleitorais, geralmente decorrente de renúncia ou impedimento, e 2) a dupla vacância por razões eleitorais, resultante de cassação de mandato. A distinção entre esses cenários é crucial, pois as regras para a sucessão e a realização de novas eleições diferem significativamente, impactando a dinâmica política e a representatividade do mandato subsequente. A análise será pautada no referencial jurídico pertinente e nas projeções decorrentes da atual conjuntura.
Dupla vacância por razões não eleitorais
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em seus artigos 141 e 1422, espelha os artigos 80 e 81 da Constituição Federal, delineando o procedimento em caso de impedimento ou vacância dos cargos de governador e vice-governador. No cenário de renúncia de ambos os chefes do Poder Executivo, o processo de sucessão é claramente definido.
No artigo 141 da Constituição Estadual, em caso de impedimento ou vacância do governador e do vice-governador, a chefia do Poder Executivo será assumida sucessivamente pelo presidente da Assembleia Legislativa e, na sua impossibilidade, pelo presidente do Tribunal de Justiça. Essa sucessão é de caráter provisório, visando a manter a continuidade administrativa até que novas eleições sejam realizadas para o preenchimento definitivo dos cargos.
A duração do “mandato-tampão” e a modalidade das eleições subsequentes dependem do momento em que a dupla vacância ocorre em relação ao período do mandato. O artigo 142 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro estabelece que, se a vacância dos cargos de governador e vice-governador ocorrer nos dois primeiros anos do período governamental, uma eleição direta deverá ser realizada 90 dias após a abertura da última vaga. Nesse caso, o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Rodrigo Bacellar, assumiria interinamente a chefia do Executivo, convocaria eleições diretas em até 90 dias para a população eleger novos governador e vice-governador para completar o restante do mandato.
Por outro lado, se a dupla vacância ocorrer nos últimos dois anos do mandato, a eleição para ambos os cargos será feita 30 dias depois da última vaga (a renúncia do governador, pois o vice-governador renunciou em 21/05/20253), pela Assembleia Legislativa.
Isso significa que a eleição para o “mandato-tampão” será indireta, conduzida pelos deputados estaduais da ALERJ. Em ambos os cenários, os eleitos deverão completar o período remanescente dos seus antecessores.
É crucial destacar que o STF tem se debruçado sobre a interpretação dessas normas, especialmente no que tange à autonomia dos entes subnacionais. Em 2022, no julgamento das ADIs 7137 e 7142, o STF reafirmou sua jurisprudência no sentido de que os entes subnacionais não estão obrigados a seguir o modelo federal, que prevê eleições indiretas na hipótese de dupla vacância no último biênio do mandato. Contudo, essa margem de discricionariedade encontra limites objetivos na própria Constituição Federal, em razão do modelo brasileiro de democracia representativa, em que o poder é exercido pelos representantes eleitos.
Mais recentemente, em 2025, no julgamento das ADIs 7085 e 7138, o STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos das Constituições dos Estados do Rio Grande do Sul e do Rio Grande do Norte. Esses dispositivos determinavam que, em caso de vacância dos cargos de governador e de vice no último ano do mandato, a chefia do Executivo deveria ser exercida no período restante, sucessivamente, pelos presidentes da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça.
No acórdão, o ministro relator Cristiano Zanin consignou em seu voto que, embora o art. 81, § 1º, da CF não seja considerado cláusula de reprodução obrigatória pelos entes subnacionais, a jurisprudência do STF é firme sobre a imprescindibilidade da realização de novas eleições, diretas ou indiretas, em caso de dupla vacância dos cargos de chefia do Poder Executivo nos últimos dois anos do mandato.
Portanto, em caso de renúncia do governador (Cláudio Castro) no último biênio do mandato, diante da renúncia do vice-governador (Thiago Pampolha), o presidente da Alerj (Rodrigo Bacellar) assumiria a chefia do Executivo e, em 30 (trinta) dias, convocaria eleições indiretas a serem realizadas pela Alerj para o término do mandato-tampão. Este cenário, todavia, aplica-se estritamente quando as razões da renúncia ou impedimento não tiverem natureza eleitoral.
Dupla vacância por razões eleitorais
A complexidade dos desdobramentos jurídicos da dupla vacância se intensifica quando a causa reside em razões eleitorais, mais especificamente, na cassação de mandatos. No Estado do Rio de Janeiro, a pendência de julgamento de um recurso no Tribunal Superior Eleitoral referente à Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije nº 0606576-54.2022.6.19.0000) adiciona uma camada de incerteza ao cenário político atual.
A referida Aije, interposta pela Procuradoria Regional Eleitoral, questiona o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) que, por maioria, julgou improcedente o pedido de cassação em relação ao governador, vice-governador e presidente da Alerj, por suposto abuso de poder político e econômico em contratações alegadamente irregulares na Ceperj e Uerj. O Recurso Ordinário Eleitoral, sob relatoria da Ministra Isabel Gallotti, tem julgamento previsto para o corrente ano no TSE.
Caso o recurso seja provido, a condenação dos recorridos ensejará a cassação dos respectivos mandatos, o que alterará substancialmente o “tabuleiro político” do Executivo estadual. Nesse cenário, a assunção da chefia do Executivo pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro seria o primeiro desdobramento, seguido pela realização de novas eleições.
A distinção fundamental, nesse caso, reside na aplicação do Código Eleitoral, que inverte a regra das eleições diretas e indiretas para o “mandato-tampão” em situações de impedimento ou vacância por razões eleitorais. O artigo 224 do Código Eleitoral, em seus parágrafos 3º e 4º, estabelece que a decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.
O § 4º do mesmo artigo detalha as modalidades de eleição: será indireta se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; e direta nos demais casos. Isso significa que, diferentemente da dupla vacância por renúncia, onde a regra geral é a eleição direta nos primeiros dois anos e indireta nos últimos dois, em caso de cassação de mandato a eleição será direta, salvo se a cassação ocorrer no último semestre do mandato do titular.
Projeções e cenários
Considerando as premissas estabelecidas, é possível delinear quatro cenários em caso de provimento do recurso no TSE e consequente cassação dos mandatos do governador, vice-governador e presidente da Alerj:
Cenário 1): Desprovimento do Recurso pelo TSE, renúncia do governador: o presidente da Alerj assumirá a chefia do Poder Executivo e, por se tratar do último biênio do mandato, em 30 dias, determinará eleições indiretas para o “mandato-tampão”, a serem realizadas pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
Cenário 2): Absolvição do presidente da Alerj, e cassação dos mandatos do governador e vice-governador até 30 de junho de 2026 (últimos seis meses do mandato): Se a decisão do TSE pela cassação dos mandatos da eleição majoritária ocorrer até essa data, o presidente da Alerj assumirá a chefia do Poder Executivo. As eleições subsequentes para o “mandato-tampão” serão indiretas, a serem realizadas pela Alerj.
Cenário 3) Cassação dos mandatos do governador, vice-governador e presidente da Alerj até 30 de junho de 2026 (últimos seis meses do mandato): Se a decisão do TSE pela cassação dos mandatos ocorrer até essa data, o presidente do TJ-RJ assumirá a chefia do Poder Executivo. As eleições subsequentes para o “mandato-tampão” serão indiretas, a serem realizadas pela Alerj, sem a participação do Deputado Rodrigo Bacellar, que estaria inelegível (artigo 22, XIV, LC 64/90). Este cenário se enquadra na exceção prevista no artigo 224, § 4º, inciso I, do Código Eleitoral.
Cenário 4): Cassação dos mandatos após 01 de julho de 2026: Se a cassação dos mandatos ocorrer a partir dessa data, as eleições para os cargos de governador e vice-governador serão diretas. Isso se deve ao fato de que a vacância ocorreria fora do período de seis meses que antecede o término do mandato, conforme o artigo 224, § 4º, inciso II, do Código Eleitoral. Nesse caso, a população do Estado do Rio de Janeiro seria chamada às urnas para eleger seus novos representantes para o restante do período de mandato.
A concretização de um desses cenários dependerá intrinsecamente do “timing” do julgamento do recurso pelo TSE e do momento da possível renúncia do governador para fins de desincompatibilização. A repercussão política e social de cada um desses desdobramentos é considerável, impactando a legitimidade do processo sucessório e a percepção da sociedade sobre a estabilidade institucional.
Considerações finais
A dupla vacância na chefia do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro representa um ponto crítico para a governabilidade e a estabilidade democrática. A legislação vigente, em consonância com a jurisprudência do STF, estabelece um roteiro claro para a sucessão provisória e a realização de eleições para o preenchimento dos cargos vagos. Contudo, a distinção fundamental entre vacância por razões não eleitorais e vacância por cassação de mandato eleva a complexidade da análise, alterando as regras para as eleições subsequentes.
A pendência do julgamento no TSE adiciona um elemento de imprevisibilidade ao panorama político fluminense. A decisão do Tribunal, seja ela pela manutenção ou pela cassação dos mandatos, terá repercussões diretas sobre quem assumirá o comando do Estado e como o restante do mandato será preenchido. A transparência e a celeridade dos processos judiciais, nesse contexto, são cruciais à segurança jurídica e a confiança da população nas instituições.
Por derradeiro, a análise aprofundada da dupla vacância no Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro sublinha a importância de um sistema jurídico robusto e de uma interpretação coerente das normas constitucionais e eleitorais. A garantia de uma transição ordenada e democrática, independentemente das circunstâncias que levem à vacância, é essencial para a República e para a efetividade do modelo de democracia representativa.
Publicado hoje na Folha da Manhã.