Quixote e Sancho no thriller de Paul Haggis

De boina, Liam Neeson serve de Sancho à missão quixotesca de Russel Crowe
De boina, Liam Neeson serve de Sancho à missão quixotesca de Russel Crowe

 

 

(72 HORAS) Cria da televisão, o diretor canadense Paul Haggis, no cinema, alcançou o sucesso primeiro como roteirista. Sua adaptação no roteiro de “Menina de Ouro” (“The Million Dollar Baby”, EUA, 2004), foi responsável pelo filme mais profundo sobre o boxe, esporte chamado de “nobre arte” que já rendeu tantos clássicos da sétima arte. Apesar do final lacrimogêneo, rendeu Oscar de melhor filme, diretor (Clint Eastwood), atriz (Hilary Swank) e ator coadjuvante (Morgan Freeman), além de uma indicação ao próprio Haggis.

Acumulando as funções de roteirista e diretor, ele conquistaria seu próprio Oscar, aliás dois, com “Crash – No Limite” (“Crash”, EUA, 2005). Num estilo talvez herdado do cinema de Robert Altman (1925/2006), com várias células narrativas se entrecruzando, o filme sobre as tensões raciais de Los Angeles deu a Haggis os prêmios de melhor filme e melhor roteiro original (além de edição, para Hughes Winborne), na grande festa de Hollywood.

Nos cinemas de Campos, novamente na dupla função diretor/roteirista, Haggis está de volta com “72 horas”, que traz o ator neozelandês Russel Crowe (Oscar de melhor ator por “Gladiador”, de Ridley Scott) no papel do pacato professor universitário e dedicado chefe de família John Brennan, marido de Lara (Elizabeth Banks), presa e condenada pelo assassinato da sua chefe no trabalho, com quem tivera uma acalorada discussão, relatada logo na cena de abertura do filme. Nesta, ficam de cara evidenciados não só o suposto motivo do crime, como também a união do casal.

Após três anos de recursos infrutíferos, diante das digitais de Lara no extintor de incêndio usado no homicídio, do sangue da vítima no seu casaco e de uma testemunha que a vê sair do local do crime, John parece ser o único a ainda acreditar na inocência da esposa. Mesmo o advogado do caso e sua família parecem se render às evidências. Até o próprio filho do casal, traumatizado após assistir a mãe ser presa, se torna esquivo em relação a ela, nas visitas à cadeia.

Sem esperanças na Justiça, John decide tomá-la nas próprias mãos. Ele usa a Internet para localizar Damon (interpretado em curta participação do ator irlandês Liam Neeson), um criminoso especialista em fugas de prisões, com quem busca os meios pragmáticos para libertar a esposa do cárcere.

Cabe a Damon redefinir os horizontes de Jonh, ao lhe dizer enfaticamente que quem pretende executar um plano dessa natureza, tem que estar disposto a matar qualquer um que tentar impedi-lo. A partir daí, o caráter de thriller de ação, novidade na filmografia de Paul Haggis, se sobrepõe ao drama familiar, acelerando no ritmo da fuga em direção a um desfecho que mantém o suspense até o fim.

Quem assina o roteiro, junto com Haggis e Guillaume Lemans, é o francês Fred Cavayé, diretor de “Tudo por Ela” (“Pour Elle”, França, 2007), do qual “72 Horas” é uma refilmagem. Todavia, outra importante fonte de diálogo do remake hollywoodiano parece ser um dos maiores clássicos da literatura universal: “Dom Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes (1547/1616).

Não por coincidência (e, no cinema, nada é), essa é a obra discutida numa das aulas do professor universitário John Brennan. Mesmo à imensa maioria que nunca leu o livro, Quixote se tornou sinônimo universal do sonhador, do romântico superlativo, em sua célebre luta contra os moinhos de vento. Menos conhecido, seu fiel escudeiro, Sancho Pança, é o contraponto do pragmatismo, a quem cabe a inglória tarefa de tentar impor os limites da realidade e do possível aos sonhos do seu mestre.

Com a liberdade da mulher por utopia solitária, John renuncia a toda sua vida que conhecia antes, como Alonso Quixano ao se transformar em Dom Quixote. Mas, diferente deste, a personagem do cinema aceita se municiar do pragmatismo de Damon (“Sancho Pança” em pequena, mas capital aparição) para tentar transformar seu sonho em realidade.

De qualquer maneira, na literatura, no cinema, ou na vida, seja por Dulcinéia de Toboso (amada de Quixote) ou Lara Brennan, mudar de vida pela mulher que se ama, no lugar de fuga, pode ser encontro.

 

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