Versos do domingo — Vladímir Maiakóvski

Na minha irrelevante opinião, os maiores poetas que modernismo produziu no mundo foram o português Fernando Pessoa (1888/1935), o grego (nascido e criado no Egito) Konstantínos Kaváfis (1863/1933), o brasileiro João Cabral de Melo Neto (1920/1999) e o russo (nascido georgiano) Vladímir Maiakóvski (1893/1930). Sobre o universo contido em um homem só, em convulsões de expansão e retração naquele tímido e fisicamente insignificante lisboeta; sobre o diálogo aberto com a mitologia, a história e o homoerotismo da Antiguidade Clássica, tão caro ao último heleno da Alexandria; sobre a palavra garimpada à sua mineralidade, na faca só lâmina do verso do pernambucano; Maiakóvski tinha a distinção do arrebatamento, do desejo do sol, das paixões reais tão impressas em sua vida e sua obra.

Egresso do cubo-futurismo, movimento artístico russo que buscou fundir o cubismo do pintor espanhol Pablo Picasso (1881/1973) com o futurismo do poeta italiano Fillippo Marinetti (1876/1944), simbolizado na blusa amarela (título dado a um poema de 1913) que trajava para chocar a conservadora Rússia czarista, Maiakóvski seria o grande cantor da queda violenta da velha ordem, no processo social mais impactante do séc. 20: a Revolução Russa de outubro de 1917, à qual serviu ativamente como propagandista, não só na condição de escritor, mas também de desenhista. Também engajaria sua arte à causa proletária no teatro e no cinema, como dramaturgo e roteirista. 

Jornais dos dias da Revolução noticiaram que quando os marinheiros revoltosos investiram contra o Palácio de Inverno do czar Nicolau II, forçando-o a abdicar ao trono, marcharam cantando em coro os versos de luta do poeta até então mais conhecido como “o grandalhão da blusa amarela”, em todo o fulgor dos seus 20 anos: “Come ananás, mastiga perdiz./ Teu dia está prestes, burguês”.

Se, aos 20 anos, todos sonham mudar o mundo, Maiakóvski, armado apenas dos seus versos, foi um dos poucos, muito poucos, em toda a História, a realmente conseguir.

Ironicamente, no processo a partir dali desencadeado, quem acabaria mastigado lentamente até ser engolido pela Revolução — Saturno a devorar os próprios filhos —, seria seu maior poeta. Doutrinado em sua arte e boicotado pessoalmente pela burocracia estatal do novo regime, sobretudo a partir da ascensão de Josef Stálin (1878/1953) ao poder em 1922, que pretendia reduzir a poesia russa, agora soviética, a um simplismo que fosse intelegível às massas, Maiakóvski acabou se matando com um tiro no peito, a 14 de abril de 1930, aos 36 anos. 

Em vida, chegou a versejar contundente resposta à medicrodade dos que pretendiam subordinar sua criação, em poema de 1927, não por acaso intitulado “Incompreensível para as massas”, mesma classificação que tentavam lhe impor: “Aos pávidos/ poetas/ aqui vai meu aparte:/ Chega/ de chuchotar/ versos para os pobres./ A classe condutora,/ também ela pode/ compreender a arte./ Logo:/ que se eleve/ a cultura do povo!/ Uma só,/ para todos./ O livro bom/ é claro/ e necessário/ a mim,/ a vocês,/ ao camponês/ e ao operário”.

Na verdade, desde 1920, quando escreveu “A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão na datcha”, ele já deixara devidamente evidenciado o parâmetro com o qual pretendia se ombrear, ao desenvolver em versos a imagem do sol aceitando a provocação-convite e descendo do céu para uma conversa entre iguais, regada a xícaras de chá, numa tarde de verão na datcha (casa de veraneio dos russos). Todavia, longe da aspiração meramente individual, concluído o diálogo fraterno entre o astro e o poeta, a lição dele extraída é comungada ao final como vocação de toda a humanidade: “Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar,/ que tudo mais vá pro inferno,/ este é o meu slogan/ e o do sol”. 

Após seu suicídio, que alguns até hoje acreditam ter sido forjado pelas motivações políticas daqueles que preferiram converter brilho em sombra, um dos principais líderes da Revolução de 1917, Leon Trótski (1879/1940), exilado e perseguido (até ser assassinado no México) por Stálin, escreveu: “Sim, Maiakóvski é o mais viril e o mais corajoso de todos os que, pertencendo à última geração da velha literatura russa e ainda por ela não reconhecidos, procuraram criar laços com a Revolução. Sim, ele desenvolveu laços infinitamente mais complexos que todos os outros escritores. Um dilaceramento profundo nele permanecia. Às contradições, que a Revolução comporta, sempre mais penosa para a arte, na busca de formas acabadas, somou-se, nos últimos anos, o sentimento do declínio a que o conduziram esses burocratas”.

Elemento sempre presente em seus versos, o sarcasmo de Maiakóvski não o abandonou nem no bilhete de suicídio, no qual advertiu sobre seu ato capital: “não recomendo a ninguém”. Por justificativa e despedida, a caligrafia dos versos: “Como dizem: caso encerrado,/ O barco do amor espatifou-se na rotina./ Acertei as contas com a vida/ inútil a lista/ de dores,/ desgraças/ e mágoas mútuas./ Felicidade para quem fica”.

Na carta testamenta também seu amor por Lí­lia Brik e Ve­rô­ni­ca Vi­tol­dov­na Po­lonskaia, a “No­ra”, ambas casadas, o que parece ter sido outra causa à depressão da qual padeceu até tirar a própria vida. À primeira, pede que o ame, enquanto a segunda esteve com Maiakóvski na noite precedente e manhã do suicídio, cujo barulho do tiro ouviu ainda no corredor do prédio, após sair do quarto do poeta. E ao Estado que ajudou a reinventar, pede que cuide das duas amantes, da mãe e das irmãs.

Em versos dedicados ao também poeta Sierguéi Iessiênin (1895/1925), que igualmente cometera suicídio cinco anos antes, Maiakóvski também já deixara outra ressalva sarcástica: “Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”.

Um ano antes, em 1924, no poema “Jubileu”, em homenagem ao 125º aniversário de nasimento de Alexander Púchkin (considerado o fundador da literatura russa moderna) Maiakóvski escrevera sem nenhum sacasmo: “É preciso/ que o poeta/ seja mestre da vida”. Iessiênin parece ter descoberto antes que, mesmo com a Revolução Bolchevique, esta necessidade jamais seria atendida. E a mesma certeza deve ter sido insuportável ao autor que, ainda a seis anos de se matar, encerraria aquele poema a Púchkin com os versos: “A mim,/ a meu posto,/ uma estátua é devida./ Dinamite:/ — eu a explodo em detritos!/ Odeio/ a morte e seu mortiço./ Adoro/ aquilo que é vida.”

Na busca de vivê-la de todas as maneiras, apesar do amor à Rússia, foi também um homem do mundo. Mesmo sem falar nenhum outro idioma, conheceu França, Espanha, Cuba, México e Estados Unidos, jornada de cujo relato em prosa chegou a citar “um tal de Brasil”.  Na definição de Boris Schnaiderman, ucranio radicado em São Paulo e um dos seus mais dedicados tradutores à língua portuguesa, Maiakóvski foi um “revolucionário nas concepções sociais e na forma que utilizou, desabusado, amigo do palavrão e do coloquial, poeta das ruas”. O que não deve nublar o fato de se tratar de um artesão da palavra com requinte de ourives, capaz de reescrever um único verso até 60 vezes, antes de se dar por satisfeito

Mas definição ainda mais precisa talvez nasça da sua própria lavra. Concluído em janeiro de 1930, apenas dois meses antes de sua morte, no poema “A plenos pulmões”, que era como o gigante (literário e literal) costumava declamar seus versos, Maiakóvski lega sua satisfação pessoal a qualquer curiosidade póstuma: “Caros/ camaradas/ futuros!/ Revolvendo/ a merda fóssil/ de agora,/ percrustando/ estes dias escuros,/ talvez, perguntareis/ por mim. Ora/ começará/ vosso homem de ciência,/ afogando os porquês/ num bando de sabença,/ conta-se/ que outrora/ um férvido cantor/ a água sem fervura/ combateu com fervor”.

Por todos esses motivos e outros tantos, sempre que alguém me pede um poema, entre os poucos que cheguei a memorizar, não tenho muita dúvida antes de emprestar voz aos versos do prólogo de “A flauta-vértebra”. Escrito em 1915, por um autor de apenas 21 anos, nele já se pode constatar o amor dividido entre mulheres passadas e presentes, assim como a idéia do suicídio e a forma que o vate (sinônimo de poeta no sentido daquele que vaticina, que vê antes) escolheria para consumá-lo 15 anos depois: “pôr-me o ponto final de um balaço”.

Numa das metáforas mais belas da poesia universal, até por sua literalidade possível, quando o significado do título se desvela ao final, o leitor-ouvinte descobre o poeta às portas de um novo começo, no raiar da sua maior revolução, onde nem a morte seria capaz de pôr termo ao destino de quem insiste em existir materialmente mesmo depois da carne, no canto dos seus versos, na flauta das próprias vértebras…

 

 

Ilustração de Maiakóvski para o poema “A flauta-vértebra”/ Tradução do texto da ilustração: “Estou preso ao papel com os pregos das palavras”
Ilustração de Maiakóvski para o poema “A flauta-vértebra”/ Tradução do escrito: “Estou preso ao papel com os pregos das palavras”

 

 

A flauta-vértebra

 Prólogo

 

A todas vocês,

que eu amei e que eu amo,

ícones guardados num coração-caverna,

como quem num banquete ergue a taça e celebra,

repleto de versos levanto meu crânio.

 

Penso, mais de uma vez:

seria melhor talvez

pôr-me o ponto final de um balaço.

Em todo caso

eu

hoje vou dar meu concerto de adeus.

 

Memória!

Convoca aos salões do cérebro

um renque inumerável de amadas.

Verte o riso de pupila em pupila,

veste a noite de núpcias passadas.

De corpo a corpo verta a alegria.

Esta noite ficará na História.

Hoje executarei meus versos

na flauta de minhas próprias vértebras.

 

 

(Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

 

 

Flauta-vértebra de 35 mil anos, achada no fundo de uma caverna da Alemanha, é o instrumento musical mais antigo da humanidade
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Este post tem 4 comentários

  1. Hélio Coelho

    Muito bom! Apreciação crítica apaixonada e consistente. Com esse texto, Aluysio,você despertou em muitos o desejo de conhecer mais de perto e profundamente o grande Maiakóvski.

  2. Aluysio

    Valeu, Helinho!

  3. laura

    Muito bom Aluísio .Bom domingo .

  4. Aluysio

    Cara Laura,

    Com que felicidade percebo que hoje esse texto escrito em 2011, quase quatro anos atrás, pode estar ainda sendo lido pela primeira vez por alguém. Obrigado a vc por isso!

    Abç e um ótimo domingo!

    Aluysio

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