Do blues à ópera, a humanidade

Depois da empáfia machista proposta na letra de “Hoochie Coochie Man”, seja cantada por Muddy Waters (1915/83) ou Eric Clapton, o equilíbrio mais próximo à realidade de todos os homens cruza a ponte do blues à ópera, dois estilos tão distintos, embora siameses na mesma passionalidade com que expõem sentimentos em música. Do bluseiro William Dixon (1915/92) passemos, pois, à ópera “Pagliacci” (“Palhaço”) do italiano Ruggero Leoncavallo (1857/1919).

Na voz do tenor espanhol Placido Domingo, a ária que conclui o primeiro ato da ópera é a minha preferida entre todas, como era coincidentemente também a do meu avô paterno, Domingos Barbosa, o “Capitão”, ele próprio um tenor amador, que infelizente não cheguei a conhecer. Em “Vesti la Giubba”, Canio, o chefe de meia idada da trupe de atores, após descobrir que sua jovem esposa (Nedda) o traíra, é obrigado a deixar os sentimentos momentaneamente de lado, para se maquiar e dar vida ao palhaço que seu público espera ansioso do outro lado das cortinas.

Nessa contradição entre a mais profunda angústia pessoal e a necessidade de fazer rir, antítese realçada pela capacidade dramática do grande tenor (e ator), o dó de peito vem ecoado desde o início dos tempos por tudo aquilo que nos faz homens.

Abaixo, a tradução em português de “Vesti la Giubba” e sua comovente interpretação por Placido Domingo, xará em nome e tom de voz do meu avô…

Vesti La Giubba

Recitar,
enquanto tomado pelo delírio
não sei mais aquilo que digo
e aquilo que faço.

Todavia é necessário. Esforça-te! Vai!
És tu talvez um homem?
Ah! ah! ah! ah! ah!
Tu és Palhaço.

Veste o casaco
e a cara enfarinha.
O povo paga
e quer rir aqui.

E se Arlequim
te rouba a Colombina,
ri Palhaço
e cada um aplaudirá.

Muda em piadas
o espasmo e o choro,
numa careta o soluço
e a dor.

Ah! Ri Palhaço,
sobre o teu amor partido.
Ri da dor
que te envenena o coração!

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