Zico — 60 anos e parece que foi ontem

No filme “Cazuza”, retrato dos anos 1980, numa cena aparentemente incidental, quando a mãe da estrela do rock nacional procura o filho pelas ruas da noite do Rio, é de Zico que se fala ao rádio do carro. Difícil para quem não viveu aquela época ter hoje a dimensão do que o craque significou naqueles tempos pós-Pelé. Se ganhou tudo pelo seu Flamengo (quatro Brasileiros, uma Libertadores e um Mundial), na Seleção, mesmo integrando uma geração brilhante, Zico não teria o mesmo êxito. No entanto, para quem viu ou só ouviu falar, a Seleção de 82, a exemplo do Fla de 81, estão entre os melhores times da história do futebol mundial, assim como o camisa 10 que comandou ambos em campo. Nesta entrevista, publicada na Folha em 2010 e vencedora do Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo em 2011, a homenagem aos 60 anos, completos hoje, de um gênio. É verdade, o tempo não para, mas alguns produzem heróis.

(Foto de Diomarcelo Pessanha)
(Foto de Diomarcelo Pessanha)

Folha – Até onde vale o paralelo entre você e Messi, cujos gênios foram notados muito meninos, apesar do físico pequeno e franzino, fazendo com que um grande clube investisse para prepará-los? Até onde hoje é possível que um Flamengo, no seu caso, não seja antecipado por um Barcelona, incubadora e hoje palco  do craque argentino?

Zico – Pode, se você tiver um olho clínico e enxergar que esse garoto pode ter futuro, é você se juntar a uma empresa dessas patrocinadoras e tentar ajudar o Flamengo a bancar esse jovem. Porque o Flamengo é uma grande marca. Se o garoto puder explodir no Flamengo, ele vai querer explodir no Flamengo. Eu não vejo dificuldade nisso.

Folha – Por falar em Messi, acredita que ele hoje seja realmente o melhor do mundo? O que achou da sua atuação na última Copa, em 2010, na África do Sul? Como foi com você, ele sofre a pressão para ser tão decisivo na seleção como é quando joga pelo clube?

Zico – Lógico, mas todo cara que aparece bem num clube, quando vai para seleção, há a expectativa muito grande; isso é normal. Ele é um jogador fantástico, que não precisa se falar muito, é o grande gênio da atualidade, diferenciado, que faz uma coisa que você não espera. Ele é espetacular, decisivo, mas todo cara decisivo precisa também que as jogadas dele sejam definidas por outros, porque ele chama atenção, então abre espaço para os outros decidirem as jogadas que ele faz. Ele pode não ter feito gol, mas criou uma série de situações de gols da Argentina, e muitas vezes não eram transformadas em gols.

Folha – Como os gols de Nunes (dois) e Adílio, que nasceram dos seus pés, na final do Mundial de 81, contra o Liverpool?

Zico – Exatamente. Quando você tem a chance de fazer algumas jogadas e elas são concretizadas, o seu valor também aparece. Quando isso não acontece, parece que você não criou nada. Em 78 (na Copa da Argentina), eu criei um monte de oportunidades para uma série de jogadores, mas ninguém fez gol; parece que eu não joguei, que eu fui uma porcaria. Mas vai ver os lances dos jogos, veja quantas bolas eu deixei os caras de frente para o goleiro, só que não foram transformadas em gols. Aí, a sua parte individual também não aparece.

Folha – Em sua opinião, quais foram o melhor time e jogador da última Copa?

Zico – Olha, o melhor time foi a Espanha e o melhor jogador foi o Iniesta, mas disparado. Ele e o Xavi foram os dois jogadores que desequilibraram. Eu vi uma série de partidas da Espanha, jogos de Eliminatórias, quando eu estava na Europa. Tinha jogo da Espanha, eu conferia o horário para poder assistir, porque é um time que tem uma espinha dorsal, um grande goleiro (Casillas), uma ótima zaga (Puyol e Piqué), um meio campo criativo, marcador, que desenvolve bem, e com um ataque que eu acho que, se dois jogadores estivessem bem, a Espanha ganharia com muito mais facilidade a Copa: o Torres e o Fabregas. O Fabregas, que vinha de uma fratura, ainda conseguiu jogar um pouco e o Torres, que havia uma esperança muito grande, mas também vinha de uma contusão. Por causa da contusão do Fabregas, ele (o técnico Vicente Del Bosque) adiantou o Xavi, que jogava mais atrás, e botou um jogador, o Xabi Alonzo, na cabeça-de-área.

Folha – Como segundo homem. O primeiro homem era o Busquets…

Zico – Pois é, era o Busquets. Então era Busquets ou Xabi Alonzo, Xavi, Iniesta e o Fabregas. Então, com isso, ele teve que mexer um pouco nessa estrutura, apesar de não ter comprometido. Mas o Xavi, tem o Xabi Alonzo e o…

Folha – E o Xavi Hernández.

Zico – É, o Xavi Hernández, que é do Barcelona, ele joga um pouco mais atrás, ele é o segundo homem e estava jogando de terceiro, um pouco mais à frente…

Folha – Iniesta pela esquerda e ele pela direita.

Zico – Exatamente, exatamente. Então, eu acho que a Espanha mudou um pouco, mas mesmo assim joga um futebol lindo.

Folha – Seu ex-companheiro na inesquecível Seleção de 1982, Falcão, chegou a citar seu nome ao traçar um paralelo nesse “futebol lindo”, que caracterizava tanto o time treinado por Telê Santana com os campeões do mundo em 2010. Até onde vai esse paralelo na maneira de atuar dos dois times? Embora inegavelmente habilidosa, não faltava à linha média espanhola jogadores mais incisivos, como eram você e Sócrates?

Zico – Porque eu acho o Iniesta, ele até é um jogador decisivo…

Folha – Eu falei incisivo, não decisivo. Você e o Sócrates marcavam muitos gols.

Zico – É, mas a gente era jogador mais ofensivo, mais jogador de frente, os dois (Xavi e Iniesta) são jogadores de meio-campo.

Folha – Mas vocês vinham de trás.

Zico – O Sócrates vinha de trás, eu jogava mais na frente. Eu acho que dali, se você tem que comparar característica de posição, talvez o Fabregas fosse comigo; agora o Xavi e o Iniesta são com o Sócrates.

Folha – Mais armadores?

Zico – Mais armadores, chegavam e tal, mas mais armadores. Eu armava também, mas sempre estava um pouco mais à frente, mais homem de ataque.

Folha – Mas não vê esse paralelo do Falcão, no toque de bola das duas equipes?

Zico – Não, lógico. Quando você tem jogadores com essa qualidade, você tem que procurar adaptar o seu time a esta situação.

Folha – Acredita que a vitória do jogo lúdico da Espanha sobre a Holanda mais pragmática dos últimos tempos será capaz de influenciar na mesma proporção que a derrota brasileira em 82, diante da Itália, que mergulhou o mundo da bola por quase 30 anos no chamado futebol de resultados?

Zico – É, mas eu acho que há uma diferença: a Holanda não joga o futebol de resultados como jogava a Itália. A Itália, apesar de ter bons jogadores, sabia das suas dificuldades e jogava daquela forma mesmo. Agora, a Holanda, não. A Holanda é um time que sempre teve jogadores de muita habilidade, de muita qualidade técnica, mas não conseguia chegar.

Folha – Mas com De Jong e Van Bommel também apelou para os cães de guarda no meio de campo.

Zico – É, o cão de guarda, mas você tem o Sneijder, o Van Persie, o Kuit, jogadores de muita qualidade técnica, mas que não conseguiam. A Holanda, por causa disso, quando teve o Cruijff, Neeskens; depois teve o Gullit, Van Basten, Rijkaard; mas essa Holanda não conseguiu ganhar. Então ele (o técnico Bert Van Marwijk) procurou adotar que esses jogadores, apesar de qualidade técnica, eles pudessem também ser um pouco mais operários. O time da Ho-landa era também um time operá-rio, mais do que os outros anteriores. Foi uma maneira que ele encontrou para chegar à final.

Folha – Mas voltando à pergunta inicial, acha que essa vitória do futebol vistoso da Espanha vai marcar tanto quanto o triunfo do futebol de resultados da Itália, em 82?

Zico – Não, hoje em dia não vai tanto. Vai marcar, mas eu acho que…

Folha – Porque aquela vitória da Itália sobre vocês definiu o futebol de uma maneira…

Zico – É, de uma maneira impressionante. Agora, eu acho que dessa vez, não. Porque todo mundo sabe que com o futebol vistoso, a possibilidade de ganhar é muito grande. Agora,do pragmático, de resultado, pode acontecer. Isso deu mais ênfase porque essa situação faz com que você, mesmo com o futebol feio, possa ganhar. E o futebol é assim, o futebol é o único esporte em que o mais fraco pode ganhar do mais forte.

Folha – Diferente do basquete e do vôlei, por exemplo?

Zico – Não tem zebra. Tênis não tem zebra, vôlei não tem zebra, basquete não tem zebra (risos). O futebol atrai tanta gente por causa disso: porque a zebra pode acontecer.

Folha – Falamos há pouco do Dr. Sócrates (falecido em 2011). Ele afirmou, numa entre-vista antes da Copa (de 2010), que a Seleção de 82 foi melhor que a de 70 e que, de-pois de Pelé, você foi o maior jogador na história do futebol brasileiro. Concorda?

Zico – (Risos) Agradeço lisonjeado pelo carinho do Sócrates. Eu acho que uma Seleção que tem Pelé e Garrincha; para mim a maior foi a de 58. Pelé e Garrincha, para mim, foram os dois maiores jogadores de todos os tempos. Então, uma Seleção que tem esses dois, foi a melhor.

Folha – Você, então, se coloca abaixo desses dois?

Zico – Totalmente, e abaixo de muitos outros. Então eu acho que são jogadores que, estando no auge, e Garrincha estava no auge, Pelé começando de uma forma espantosa, não tinha como. Para mim, foi a melhor Seleção, apesar de não ter visto, mas pelas imagens que eu vi, pelos jogadores que tinha, para mim a melhor Seleção foi a de 58. Garrincha, Didi, Pelé, Vavá, Zito, Nilton Santos, Djalma Santos, Orlando. Então eu acho que foi uma Seleção, a meu ver, mais completa que a de 70.

Folha – Mas e entre as Seleções de 70 e 82, qual foi a melhor?

Zico – A de 70, que ganhou (risos).

Folha – Em clubes e seleções, quais foram os melhores times que você viu jogar?

Zico – Bom, de seleções, que eu vi jogar, tirando as brasileiras, a seleção da Holanda de 74. Aquela seleção era muito boa, era gostoso de se ver jogar. O time do Barcelona, agora, destes últimos tempos. O time do Ajax que foi campeão naquele ano (1995) que ganhou do Grêmio, no Mundial; ganhou nos pênaltis. Aquele time, eu acompanhei na Europa, tinha como um dos melhores joga-dores o Litmanen; está até hoje na seleção da Finlândia. Este time do Ajax era formidável de se ver jogar. Se não me engano estava o Kluivert, acho que tinham aqueles dois irmãos… de Boer…

Folha – Frank e Ronald de Boer.

Zico – É, acho que tinha esses dois. Do Brasil, aquele time do Palmeiras, que o Vanderley (Luxemburgo) dirigiu (Bi-Campeão Brasileiro 1993/94), que tinha Muller, Roberto Carlos, Rivaldo, Djalminha, César Sampaio, Cafu. Era um timaço, era gostoso de ver, davam de quatro, cinco, seis, se divertiam. Gostei de ver, lógico, o time do Santos na época do Pelé…

Folha – Foi o melhor?

Zico – É difícil você dizer o melhor, você pode botar o melhor por causa do Pelé, a mesma coisa do Garrincha.

Folha – O Botafogo de Garrincha?

Zico – Vi jogar com o Garrincha, ainda peguei aquele momento de tristeza. Eu vi aquela final de 62, que Garrincha estraçalhou o Flamengo (3 a 0), eu estava no Maracanã naquele jogo. Era um timaço. Mesmo comigo jogando, aquele time do Flamengo de 81 era um timaço também (risos). Eu acho que o Brasil teve grandes times, o São Paulo, com Telê (Bi-Campeão Mundial em 1992/93), também era gostoso de se ver jogar. Foram times fantásticos. O futebol, quando apresentou esses times, foi sempre um prazer para todo o torcedor.

Folha – Depois que você parou, quem foi o grande jogador brasileiro? Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká?

Zico – Todos eles foram, cada um na sua época, o melhor.

Folha – Depois de você, não apontaria um?

Zico – Maior continuidade de todos, acho que foi o Ronaldo; maior número de títulos, de conquistas coletivas, individuais. Eu acho que o Ronaldo superou a todos nós.

Folha – Você, inclusive?

Zico – Eu acho, acho.

Folha – Do que você viu, dentro e fora do campo, seria capaz de escalar seu time de todos os tempos? Telê seria o treinador?

Zico – Seria, seria, mas seria muito difícil dizer, porque passei por três gerações; seria injusto. A (revista) Placar até me pediu isso, eu disse o seguinte: eu vou fazer o time do Flamengo de 81, boto o Pelé no meu lugar e eu fico de auxiliar do Carpegiani (campeão brasileiro pelo Fla em 1980, como jogador, e mundial em 81, como técnico), para fazer treinamento de finalização com Pelé, para ensinar ele a fazer gol (risos). Isso é uma brincadeira com ele (risos)…

Folha – O Flamengo de 81 com Pelé no seu lugar?

Zico – No meu lugar, eu e o Carpegiani de técnico. Mas é muito difícil você fazer uma seleção…

Folha – Garrincha não estaria nessa seleção?

Zico – É mais com quem eu joguei. Pelé eu ainda joguei contra, Garrincha não.

Publicado hoje, na edição impressa da Folha da Manhã.


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Este post tem um comentário

  1. Maria

    Atualíssimo artigo.Parabéns . Justa homenagem a este íntegro atleta

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