Retomada de bola
Por Arthur Dapieve
Deixei de ganhar uma bolada em março. Enquanto se especulava sobre quem seria o sucessor de Bento XVI, eu torcia, quase rezava, por um papa argentino. Tivesse mais fé, e pecasse apostando, embolsaria o fruto de minhas preces. Nada contra os cardeais brasileiros — tenho certeza de que eles seriam, e eventualmente serão, ótimos papas — e sim contra o ufanismo que os botava nas alturas, barbadas no conclave.
Os jornais brasileiros só faltavam dizer que a chaminé do Vaticano iria inovar e soltaria fumaça verde e amarela quando os cardeais reunidos na Capela Sistina vissem a luz e elegessem um patrício nosso. Eu pensava “pré-sal, Copa do Mundo, Olimpíadas, Jornada Mundial da Juventude e papa brasileiro?!” Seria uma congestão de patriotismo do tipo nunca-antes-na-história-deste-país. Não, por favor. Melhor um argentino.
O simpaticíssimo Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, saiu melhor que a encomenda. Um amigo tuitou que era a primeira vez que via as palavras “argentino” e “humilde” na mesma frase. Modéstia dele, que é argentino. Acho que você sabe que brasileiro é ridicularizado no resto da América Latina pela megalomania. Tudo aqui é o maior, o melhor, do mundo, da galáxia, “Obina joga mais do que Eto’o” levado a sério.
Dá para imaginar, portanto, a divisão dos meus sentimentos na Copa das Confederações, ainda mais na hora em que os gastos públicos com o futebol são mui justamente questionados nas ruas. Menos mal — na verdade, ótimo — que claro já estava que a galera não ia mais se deixar enganar pelo quique da bola. Como diria o pensador Luciano do Valle, “uma coisa é uma coisa e outra coisa, é outra coisa”. Tetra das Confederações? Beleza. Continuamos querendo prestação de contas, saúde, educação e transporte. Queremos ser tratados como cidadãos, não como meros torcedores.
No pontapé inicial da competição, eu declarava no botequim que estava indeciso entre a Itália, por razões familiares, e o Uruguai, por razões clubísticas. Na final, porém, a Patroa já estava me castrando no sofá: “Você está torcendo pelo Brasil!” Méritos de Felipão, que em pouco tempo montou uma equipe de marcação feroz e contra-ataque rápido. Pode-se não gostar do estilo de jogo, mas ela sobrou no torneio. Fred, os cabeças de área, a zaga, Júlio César e, afinal, Neymar foram muito bem com a amarelinha.
Também nunca me agradou o tal tique-taque espanhol, aquele joguinho de passes curtos e intermináveis. Parecia-me um amante que exagerasse nas preliminares e na hora de meter — a bola, a bola — para dentro já tivesse se desinteressado do esporte e fizesse o gol só para cumprir tabela. A estreiteza dos placares espanhóis atesta a falta de apetite da seleção que, um dia, numa galáxia distante, foi conhecida como “a Fúria”.
Na verdade, o tal tique-taque espanhol me parece uma versão emasculada do estilo de jogo do Barcelona, este sim vistoso e matador. A diferença, mais uma vez, está num argentino: Messi e sua vocação para (muitos) gols. Oxalá Neymar aprenda com o camisa 10 do Barça que pega mal cair em toda e qualquer disputa de bola. A encenação que ele fez pouco antes de ser substituído contra o Uruguai recordou-me aquele boato sobre o fim do Bolsa Família. Lembra? Em maio, o governo rolou no gramado segurando o tornozelo, acusou a oposição de sabotagem e, no final das contas, tinha apenas tropeçado nas próprias pernas burocráticas. Hoje não se fala mais disso.
Bem, o Brasil merecidamente ganhou. Contudo, fiel a meus princípios, acho que esta é a pior coisa que poderia ter-nos acontecido com vistas ao ano que vem. Não por nenhum tabu do tipo “seleção que leva as Confederações fracassa na Copa seguinte” e sim porque voltarão a bater forte os tambores do ufanismo, no peito da “pachecada”, dos publicitários, dos jornalistas e, claro, dos políticos. Estes, aliás, são craques em acreditar no marketing que pagam para criarem em torno deles mesmos. Não fosse assim não teriam sido pegos pelas manifestações com as cuecas na mão.
Dia desses, li algo bonito e interessante em “Marx estava certo”, do crítico cultural inglês Terry Eagleton, traduzido para a Nova Fronteira por Regina Lyra: “Theodor Adorno certa vez observou que os pensadores pessimistas (ele tinha em mente Freud, e não Marx) servem melhor à causa da emancipação humana do que os imaturamente otimistas, pois dão testemunho de uma injustiça que grita por redenção e que poderíamos, de outro jeito, esquecer. Ao nos recordar de quão ruins são as coisas, eles nos impelem a consertá-las. Eles nos impelem a dispensar o ópio.”
A indignação do último mês só pode ser “extraordinariamente otimista quanto ao futuro” — algo que Eagleton diz de Marx — porque é “extraordinariamente pessimista quanto ao passado”. O Brasil está mais maduro, ainda que certas pessoas em Brasília façam beicinho porque os jovens marcaram por pressão e retomaram a bola.
Publicado hoje, na edição impressa de O Globo.
Jovens são destemidos,exceto àqueles pau-mandados, sem personalidades