Dia de quem me deu vida, nome e profissão

Há pouco, soube de fonte confiável que meu telefone está grampeado. Por ora, o que me importa é que meu pai hoje completaria 77 anos. E não há Convenção Municipal de Cultura, ataques pessoais, mentirosos e sórdidos dos lambe botas de plantão, cuja mediocridade se banca com dinheiro público, ou mesmo do dono das botas que pisam há 25 anos sobre esta planície cortada pelo Paraíba do Sul, que me tirarão do respeito ao luto pelo aniversário de vida do homem que, ao lado do meu filho e meu irmão, mais amei (e amo!) nesta nossa breve aventura de existência. Abaixo, segue republicado o artigo que escrevi logo após sua morte, em 17 de agosto do ano passado. E se fui capaz de escrever o que penso, sinto e creio como verdade, depois disso, não há nada entre o céu e a terra capaz de me demover de continuar a fazê-lo, até minha própria morte, em memória a quem me deu vida, nome e profissão.

No final do horizonte

Por Aluysio, em 18-08-2012 – 0h17

“Está vendo o horizonte? Se você olhar bem, vai enxergar a África bem lá no final! Foi de lá que veio o homem, meu filho! Foi lá que tudo começou!”. À beira mar, onde o dublê de jornalista e pescador gostava de passar os finais de semana de sol com sua família, era o que dizia aquele pai, mais ou menos com a idade que tenho hoje, àquela criança que um dia fui.

Mais que qualquer outra coisa, mais que seus testemunhos de criança nos tempos da II Guerra Mundial, das molecagens do menino criado em Guarus, da rebeldia do adolescente expulso do Liceu para acabar interno em Pádua, mais que as estórias do boleiro campeão pelos juvenis do Rio Branco no enfrentamento direto contra o Americano de Amarildo (depois Bi-Campeão do Mundo pelo Brasil, no Chile, em 1962), mais que as inconfidências do mulherengo inveterado, que o gosto pela música, pela literatura, pelo cinema, pelos esportes, mais do que qualquer lição de jornalismo, nenhuma semeadura do meu pai vicejou tanto em mim quanto aquela “África” a ser buscada no final do horizonte, a origem de todos nós naquela imensidão de quando o Atlântico se espraia diante da nossa própria pequeneza neste mundo.

Durante muito tempo, aquilo se transformou numa obsessão. Criança e adolescente, sempre quando à beira mar, fitava o horizonte até os olhos doerem, ou serem lentamente tomados pela cegueira enquanto o sol se punha mansamente às minhas costas. Posteriormente, o hábito acabou convertido em preocupação para aquele que o incutiu em mim, depois que passei, na juventude, a pegar o carro, a esmo, em qualquer madrugada ávida de imensidão, para guiar sozinho na Campos-Atafona, só para ver o sol brotar de dentro do mar, até que o astro amigo dos poetas Rimbaud e Maiakóvski me cegasse em seu nascimento, como antes também fazia em sua morte.

Foi mais ou menos nessa época em que tive a última pescaria com meu pai, lá para os lados de Iquipari, bem antes destes tempos do Porto do Açu. Estávamos eu, Aluysio e o Rafael Abud, hoje médico. No auge do nosso vigor físico, jovens homens bem maiores e mais fortes que o pequenino e já cinquentão Barbosa, eu e Rafael nos orgulhávamos das nossas varas de fibra japonesa e dos nossos molinetes de última geração. Mas a empolgação só durou até o momento do primeiro arremesso.

Eu e Rafael avançávamos na água quase até o pescoço para arremessar nossas linhas uns 100, 150 metros mar adentro. Papai pouco molhava os pés para lançar suas iscas depois da arrebentação das ondas, com sua vara simples de bambu e sua inseparável carretilha Penn, na qual chegava a queimar o dedo para não deixar que fossem embora todos seus 250 metros de linha. Depois de nos humilhar, sem grande esforço, o velho pescador só olhava para a gente e ria.

Seja para buscar a África ou o peixe, meu pai me ensinou a olhar a imensidão sempre de frente. Foi dessa maneira, de cabeça em pé, com uma coragem física e uma serenidade que nunca vi em nenhum outro homem, que ele lutou pela própria vida, até o fim, como os peixes que mais admirava fisgar; como o marlim capturado pelo velho Santiago, enquanto sonhava com leões brincando nas praias da África, na prosa em que Hemingway legou, de pai para filho, tantas lições de jornalismo, de vida e de mar.

Tentei lutar ao seu lado. Nos últimos dois meses, pouco me dediquei a qualquer outra coisa. Mas não consegui fazer o que meu pai um dia fez por mim; não consegui salvar sua vida. Meu arremesso, em todos os sentidos, sempre foi mais curto que o dele.

Todavia, com a idade madura e minha própria paternidade, aprendi que mais importante do que conseguir enxergar a África, é buscá-la, sempre, ao final do horizonte de todo dia. Afinal, como um jornalista e pescador revelou certa vez a uma criança, é de lá que nós todos viemos. É lá, do outro lado do oceano, que meu pai me espera.

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Este post tem 8 comentários

  1. santos

    Lindo texto.Parabéns.

  2. Adelia Melo

    Parabéns para o seu pai que muito desbravou com competência e seriedade! Onde estiver veras com orgulho o legado que deixou para vocês irem a frente, firmes e fortes!
    Abs

  3. santos

    Meus sentimentos, gostava e admirava muito teu pai e sei que a recíproca era verdadeira.

  4. caio

    Saia dessa pois eles vão acabar com vc.
    Patricia está investigando sua vida.

  5. Vania Manhaes Alves

    Tinha por seu Aluysio admiração e respeito como a um pai, e sempre releio esse texto escrito por vc e não consigo conter as lágrimas.O velho Barbosão é inesquecivel.

  6. artur gomes

    belo belo como diria Manuel Bandeira.
    grande abraço Aluysio

  7. santos

    Caio, isto é uma ameaça? Seja claro ,endereçado a quem?

  8. Helô Landim

    Mais que belo, Artur, Aluisio traduz a essência do Barbosão.No desprendimento , na poesia, e principalmente no destemido ofício de olhar largo, de frente a “nossa áfrica ” de todos os dias… um bj carinhoso e ti e teu irmão Cristiano. Um fraterno abraço a tua mãe,Diva!

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