Entre o rio e o mar, de Atafona à ilha do Pessanha

“Na ribeira deste rio

ou na ribeira daquele

passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

numa sequência arrastada,

do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando,

nem bem no rio que passa

mas só no que estou pensando,

porque o bem dele é que faça

eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

que está aqui ou ali,

e do seu curso me fio,

porque, se o vi ou não vi,

ele passa e eu confio.”

(Fernando Pessoa)

 

Renato e, à frente, Dorinha, em fila indiana no túnel entre as árvores do mangue
Renato e, à frente, Dorinha, em fila indiana no túnel entre as árvores do mangue (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

Se os caiaques foram coqueluche nos mares, rios e lagos brasileiros dos anos 1980, qualquer um já deve ter notado que, nesta nossa segunda década do novo milênio, o stand up passou a ser a onda de quem quer se locomover silenciosamente pelo dorso das águas, contando apenas com a força dos próprios braços ao remo. Durante este verão, em quase todas as manhãs, praticantes das duas modalidades têm se reunido regularmente no ponto de encontro do rio Paraíba do Sul com o oceano Atlântico, na foz entre Atafona e Gargaú, entre São João da Barra e São Francisco de Itabapoana, polvilhado de ilhas e manguezais paridos na mistura de água doce e salgada.

Referência de quem busca esse misto de lazer, esporte, turismo ecológico e aventura, o educador ambiental da Prefeitura de São João da Barra Luiz Henrique de Araújo, o Lulu, costuma reunir e guiar amigos pelo rio, saindo de Atafona, geralmente com destino à ilha do Pessanha, passando também pela da Convivência. E qualquer um que chegar, tiver sua embarcação e quiser se integrar, ao grupo e à natureza, passa a ser considerado amigo.

A partida — Na manhã do último domingo, maré baixa, ao lado do Mercado de Peixe, da Igreja Nossa Senhora da Penha, do bar Cais do Porto e do tradicionalíssimo Restaurante do Ricardinho, saíram cinco embarcações rumo ao Pessanha: dois caiaques e três stand ups. Neles, além de Lulu e do repórter, ganharam o Paraíba a remo a dançarina Dorinha Vianna, o produtor rural Guilherme Barroso e o militar reformado Renato Albernaz. O último, um daqueles que se tornou companheiro de expedição simplesmente por aparecer ali, com seu stand up, e querer comungar em grupo da mesma experiência.

Atravessado o Paraíba, mirando as Pedras de Alair — um dos tantos diques de pedra cujas origens são creditadas ao famoso deputado federal falecido em 1987 —, após contorná-las à direita, as embarcações ganham em fila indiana um canal estreito. Nele, o barulho dos pássaros e o som de cada remada ecoam mais altas no túnel construído pela natureza entre as águas rasas e as copas entrelaçadas das árvores, filtrando o sol, a partir de raízes nas margens opostas do manguezal.

Dorinha, Renato, Barroso e Lulu remando ao istmo de areia que, na maré baixa, une as ilhas da Convivência (à esq.) e a do Pessanha
Dorinha, Renato, Barroso e Lulu remando ao istmo de areia que, na maré baixa, une as ilhas da Convivência (à dir.) e a do Pessanha (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

Primeira parada — Sob a luz do astro rei ao fim do túnel, revela-se o istmo de areia que une as duas ilhas na maré baixa, a da Convivência, à direita, e a do Pessanha, com os cataventos brancos da estação eólica de Gargaú e a Serra do Mar compondo vértebras ao fundo. Suspensos barcos e remos, enquanto canoas motorizadas levam e trazem famílias em lazer dominical junto à natureza, cada um dos remadores faz o que quer na primeira parada: uns alongam o corpo, outros fazem prática de yoga, todos se hidratam com a água levada e se banham tanto nas que correm no rio, numa beira da ponte de areia momentânea, quanto nas ondas do mar, no lado contrário apenas a poucos metros.

Dali, Renato regressa, enquanto os outros quatro devolvem suas embarcações à água para remar até uma pequena enseada às margens da capela de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Pessanha há 160 anos, em branco e azul da pintura nova. O caminho por terra leva aos verdadeiros personagens: os moradores da ilha. O mais antigo deles é seu Miguel Alonso, de 60 anos, os últimos 20 vividos no Pessanha, após ter morado outros 20 na Convivência. Ele é pescador e está recebendo em sua casa o sobrinho, Reinaldo Gomes, de 30, que mora em Campos e veio de Atafona com sua canoa a motor, a “Surfista”, na qual repousa o guarda sol laranja que protegeu no caminho a esposa e as duas filhas pequenas.

Seu Miguel Alonso, morador mais antigo da ilha do Pessanha
Seu Miguel Alonso, morador mais antigo da ilha do Pessanha (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

“Xerife” da ilha — Seu Miguel é uma espécie de xerife da ilha, que protege por conta própria, e risco, a natureza do local. Ele conta que por repreender catadores de caranguejo que capturam fêmeas ovadas no período de defeso, chegou a receber ameaças de morte. Já teria levado suas denúncias ao Ibama, ao Inea e à Polícia Federal, mas reclama que até agora nada foi feito.

Outro morador da ilha, mais recente e velho conhecido de Atafona, é o publicitário Neivaldo Paes, o Bambu, de 54. Ele se mudou para uma casa que já havia comprado no Pessanha, depois que o mar comeu seu bar, em 2012, onde morou por seis anos, na última construção de alvenaria do Pontal, erguida nos anos 1960 como casa de barco da família Aquino, proprietária do Grupo Thoquino, do conhaque de alcatrão São João da Barra, conhecido e consumido em todo o Brasil.

Recebendo amigos — Bambu diz que sua nova moradia não funciona como bar. De qualquer maneira, não se furta em receber na ilha os amigos que queiram dividir o que chama de seu paraíso. No último domingo, quem estava lá era o motorista sanjoanense Luiz Gustavo Machado, de 37, que havia feito o Paraíba de estrada para chegar ao Pessanha sozinho, remando em seu stand up.

Para quem quiser visitar ou fazer contato com Neivaldo, seu celular é 99706-0036. E quem não for praticante de caiaque e stand up, ou simplesmente não quiser se arriscar em voltar remando depois de algumas cervejas, dois irmãos fazem o transporte em canoas a motor, saindo de Atafona, a cerca de R$ 10 por cabeça, contando ida e volta: Taizinho (99917-4076) e Marciano (99914-1652).

Dona Malvina Miranda, em sua casa, com o cortinado no quarto para proteger do maruim
Dona Malvina Miranda, em sua casa, com o cortinado no quarto para proteger do maruim (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

O maruim — Vizinhos de Bambu, embora residam em Atafona, Leoni Miguel da Silva, de 62, e dona Malvina Miranda, a quem foi conferida a deferência de não ter a idade perguntada, passam boa parte do ano, principalmente os finais de semana, na casa que ela mantém há cinco anos na ilha. Diante dela, os restos de estrume de boi queimado na entrada, onde é usado como repelente natural, e o cortinado dentro do quarto, revelam o grande vilão humano do Pessanha, talvez anti-herói da natureza: o maruim, também conhecido como mosquitinho-do-mangue. Quando o vento está parado, garantem Leoni e dona Malvina, o maruim aparece e todo mundo some da ilha.

Enquanto Neivaldo garante apenas receber os amigos, quem montou um bar na ilha foi Vanessa Barreto, de 28. Pescadora registrada e catadora de caranguejo, foi da última função que ela batizou seu estabelecimento, montado sobre os alicerces da casa de uma prima: Bar das Caranguejeiras. O plural se dá porque ela tinha mais duas sócias, também colegas de ofício, mas hoje administra sozinha o bar, ao lado apenas do marido, o pescador Fabiano Rosa, de 31. O telefone de Vanessa para contato é 99885-8240.

 No caminho de volta, Lulu age como educador ambiental e cidadão ao recolher rede abandonada
No caminho de volta, Lulu age como educador ambiental e cidadão ao recolher rede abandonada (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

Regresso — Conhecidos os moradores da ilha, com tarde, fome e maré cheia dando o ar da graça, é hora de pegar as embarcações e remar de volta a Atafona. Em seu stand up, atuando na margem direita do Paraíba como educador ambiental de São João da Barra, e na esquerda, em São Francisco, como cidadão, Lulu sai catando os restos não degradáveis deixados por quem não sabe conviver com a natureza sem degradá-la. Chega a recolher uma rede velha de pesca, ainda capaz de matar os peixes, mesmo que ninguém mais os recolha das malhas encardidas pelo barro carreado nas águas do rio, o mesmo que formou em milênios a planície.

Ao passar novamente entre o Pessanha e a Convivência, a subida da maré cobre na sucessão de cada onda a mesma ponte de areia na qual se chegara algumas horas antes, com sensação de terra firme. Entre o Paraíba e o Atlântico, onde a paisagem se transforma todo dia, a olhos vistos, a força dos braços humanos não é páreo para a natureza. Mas a ponte erguida com ela, dentro de si, é para sempre.

 

 

Foz do Paraíba do Sul vista de cima (foto: arquivo)

Ilhas do Paraíba do Sul

(Por Aristides Soffiati)

No início da formação do delta do Paraíba do Sul, o rio saiu da zona serrana e se ramificou em quatro braços. No avanço deles, muitas ilhas foram se constituindo. Com as transformações operadas por obras humanas, muitas delas deixaram de existir. O braço que alcançou mar aberto é o atual curso baixo do rio. Ele se bifurcou em dois canais principais e em vários outros secundários. O maior é o canal de Atafona. O outro é o de Gargaú.

Quem olha do alto a desembocadura do Paraíba do Sul notará a profusão de grandes e pequenas ilhas. Uma imagem de satélite com boa definição também as mostrará. As mais conhecidas são as da Convivência, do Pessanha e do Lima. A da Convivência se tornou famosa pela colonização por muxuangos, provavelmente descendentes de náufragos germânicos. Pessoas de pele clara e cabelos louros que adotaram a antiga prática do casamento por rapto. Na do Pessanha, o escritor campista Osório Peixoto ambientou seu romance “Mangue”.

O título do livro nos remete a uma característica marcante dos rios que desembocam no mar: a presença de um ambiente denominado estuário. Ele se forma pelo encontro da água doce do rio com a água salgada do mar, gerando água salobra. Esse ambiente existe em todos os rios do mundo que desembocam no mar. Porém, só nos rios com desembocaduras na zona intertropical cresce uma vegetação adaptada à água salinizada. Trata-se do manguezal, com árvores que podem alcançar 35 metros de altura e que se ajustam a um solo lamoso e pobre em oxigênio. O manguezal do Paraíba do Sul é famoso, proporcionando paisagens belíssimas para o turismo e para atividades pesqueiras. Pena que não esteja sendo devidamente protegido.

 

Publicado hoje na edição impressa da Folha.

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Este post tem um comentário

  1. Sandra Maria santos

    É isso aí.Atafona com pontos turísticos maravilhosos e no entanto os turistas são levados a “turistar”nas ruínas .

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