Acordou como não se lembrara de tê-lo feito numa quarta-feira de cinzas. Eram seis e pouca da manhã. Calçou meias baixas e os tênis de corrida. Amarrou bem firme os laços aos cadarços, para evitar depois qualquer parada não planejada. Escovou os dentes, passou desodorante, vestiu a camisa, pegou os óculos escuros e foi alongar o corpo na garagem, em frente ao portão alto e branco da casa, em companhia das cadelas soltas para velar a segurança da última noite de carnaval que já não havia.
A cada flexão dos músculos, notava que estes, duros, ainda pareciam dormir. Venceu calmamente a resistência das fibras do próprio corpo, se despediu das cadelas em suas faces de carranca, bateu o portão atrás de si, ganhou a rua larga do Clube de Atafona e se pôs em marcha acelerada, enquanto acionava o cronômetro do relógio.
Para fugir da areia das dunas invadindo o asfalto da av. Atlântica, entrou só na segunda transversal à esquerda, na rua do Armazém do Deodato. Hoje calçada sobre o que já foi rua de terra, antes era mangue, ressurreto em cada período de chuvas prolongadas. Mas, como em todo aquele verão, estava seco e quente. E o sol ainda baixo não dava nenhuma indicação de que seria diferente naquele primeira aurora da Quaresma.
Protegido pelas sombras ainda longas das casuarinas, seguiu em marcha forte pela Atlântica, ao lado do oceano que a batiza, até que o cronômetro anunciasse os 15 minutos necessários ao aquecimento do corpo, completos, como no hábito já firmado, entre o viveiro humano ainda vazio do Bar do Nelson e o 5º GBM, com seus bombeiros já em início de alvorada da vida militar. Paisano em opção de disciplina, a partir dali começou a correr do lado esquerdo do asfalto, contrário à mão dos carros, para poder enxergá-los de vinda.
Após alcançar a casa do disco, projeto arquitetônico ousado e referencial da orla, consultou mente, corpo e neles encontrou aprovação para ir além. Seguiu correndo e contando as ruas transversais de Chapéu de Sol, mais uma, mais uma, até chegar à primeira passarela na transversal oposta, feita em madeira para facilitar acesso à praia. Dali, atravessou o asfalto e ganhou outra passarela, mas paralela e de pedra, para retornar sem deixar de ver os carros de frente, agora encarados com a satisfação de quem se dedicou e soube exceder seus limites. E o sentimento de orgulho teve reforço quando a solidão daquela corrida em manhã de ressaca quase geral foi quebrada pelo aceno da mãe de um amigo antigo, a fumar seu primeiro cigarro da manhã, sentada na varanda da casa, que lhe gritou: “Estou gostando de ver!”
Inflado como criança, como se ainda fosse acelerou a corrida na combustão daquele novo sopro, suficiente para vencer o nordeste fraco que dificultava o caminho de volta. Chegou à mesma transversal da Atlântica de onde tinha saído. Eram agora um pouco mais de sete e meia. Dali, novamente em ritmo de marcha, para desacelerar gradativamente o corpo, chegou de novo à sua casa, onde o caseiro, avisado do dia anterior, já o aguardava no portão entreaberto. Precisava da ajuda dele para tentar exceder outro limite.
Na mesma garagem onde alongara o corpo antes de correr, com as cadelas já presas, sentou-se à mesa de supino, companheira antiga, reformada da maresia pelo filho do caseiro que agora o ajudaria. Mesa e corpo unidos para se livrarem de suas ferrugens. Primeiro, com o banco inclinado, atou suas mãos à barra de aço com duas anilhas de chumbo presas em cada lado, uma com 10 kg, outra de 5 kg. Ergueu os 40 kg no conjunto de chumbo e aço na primeira série de 12 repetições, respiração cadenciada, ar preso quando com a barra junto ao peito e solto no barulho das ondas com os braços estendidos.
Com as mãos amigas a ampará-lo, sobretudo no pequeno toque para ajudar o impulso inicial de elevação da barra, se sentiu seguro para trocar as duas anilhas de 5kg, por mais duas de 10 kg. E com a nova pesagem total de 50 kg, completou mais duas séries de 10 repetições, um minuto de intervalo entre cada, anotado no mesmo cronômetro ao pulso que já lhe marcara a corrida.
Deitado o banco do supino, na facilidade maior do ângulo reto, manteve o peso na primeira série de 10 repetições. Repetidos peso e sequência, sentiu-se seguro para arriscar mais, devolvendo as anilhas de 5 kg às quatro de 10 kg que já estavam distribuídas nos dois lados da barra. Erguendo aqueles 60 kg de metal, cumpriu mais duas séries, a primeira de oito, a segunda de seis repetições.
Não havia tempo para mais nada, pois havia marcado no dia anterior, como fizera com o caseiro, para remar até a ilha do Pessanha, acompanhado de alguns amigos. Pegou o jipe e nele guiou até o ponto de encontro, onde todos já estavam esperando. Jogaram caiaques, stand ups e seus remos sobre os bagageiros dos carros, e partiram todos, por terra, ao ponto de saída das águas do Paraíba do Sul sobre o Atlântico, naquele enclave espraiado em maré baixa entre o Mercado de Peixe, a igreja Nossa Senhora da Penha, o bar Cais do Porto e o tradicionalíssimo Restaurante do Ricardinho.
Entrou até a cintura no velho caiaque de fibra, cuja cor salmão embranquecera com o passar dos anos. Era mais rápido e por isto mais instável e perigoso do que os modernos caiaques abertos em plástico de alto impacto, como os dois que seguiam na expedição, completa por dois stand ups. Um a um, todos se reuniram em remadas lentas até o mole de pedra exposto pelas águas rasas, após contornarem à direita na ilhota fluvial em frente. Dali, ainda em águas sanjoanenses, era atravessar a largura da foz do Paraíba até ganhar a outra margem, já em São Francisco de Itabapoana.
Com o nordeste fraco do retorno na corrida agora querendo virar sudoeste, felizmente também sem força, o round de estudos entre os ventos agitava algumas marolas no leito do rio. Concentrado no peso do seu corpo sentado, em sua respiração, no ritmo e na força das remadas necessários ao equilíbrio do barco, não sentia mais a cintura encaixada nele, mas à própria foz. E foi assim, vendo crescer a margem oposta, sem desacelerar do início ao fim o remo girando com seus ombros e braços sobre o dorso do rio, que se viu de súbito na matéria dos versos escritos anos atrás:
“ao alcançar a outra margem, não era
mais o mesmo homem, nem mesmos
eram os rios atravessados, múltiplos
a desaguar no Um que a todos gera”
O carnaval, o rio, o homem, as cinzas e seus limites agora eram outros.
Publicado hoje na edição impressa da Folha.
Obrigado por esta belíssima crônica! O desfecho da narrativa foi absolutamente perfeito, deu gosto de ler.
Caro Savio,
Vindo de vc, o elogio é de se guardar.
Abç e grato pela generosidade!
Aluysio