Entre a violência da polícia e a estupidez dos black blocs, perdemos o rumo

UFC

 

Cineasta Cacá Dieguez
Cineasta Cacá Dieguez

O que ainda não sabemos

Por Cacá Dieguez

 

Bem que eu gostaria, mas não dá para falar de outra coisa: é hoje!

Meio desiludido, andei pensando em usar da prerrogativa que me oferece a idade e não votar este ano. Mas caí em mim a tempo. Ou fui derrubado pela celebração do evento democrático, a necessidade de me sentir responsável pelo que acontece no país. A democracia é antes de tudo o regime do outro, a responsabilidade que cada um tem pelo todo. Me rendi ao talvez inútil, mas não fútil, entusiasmo.

Já disse que não sou catastrofista, não acho que estejamos vivendo o pior dos tempos. Em geral, é tão difícil viver que confundimos nossa agonia com a agonia dos tempos, como se nossa dor fosse fruto do pior momento da história da humanidade, aquele que estamos vivendo. Confundimos a angústia de nossa finitude, com o próprio fim do mundo. E, no entanto, a humanidade segue avançando; como uma senhora bêbada pelas ruas, mas avançando.

Erramos muito. Ao longo do tempo, os homens transformaram em costume crimes morais e materiais, leves ou imperdoáveis, praticados à custa do outro em nome do poder e do dinheiro. E finalmente consideramos tudo isso normal. Às vezes, penso até que a história da humanidade é a maior prova de que Deus não existe ou não tem jurisdição sobre nós. Ou ainda, se Ele existe, está pouco se lixando para o que fez.

Das soberbas pirâmides do Egito clássico ao esplendor barroco de nossas igrejas coloniais, construímos nossas maravilhas às custas da escravidão de semelhantes de outra cor, religião ou etnia. Atiramos à fogueira aqueles que nos ameaçavam porque não os compreendíamos; como degolamos diante das câmeras aqueles de quem discordamos. Sempre resolvemos com guerras e, não poucas vezes, espantosos genocídios as diferenças entre nossas tribos e nações. E, uma vez vencedores, transformamos nossos horrores em feitos heroicos, monumentos à glória de nosso povo.

Apesar de tudo, vamos em frente. Atravessamos os oceanos e voamos acima das nuvens, curamos os males do corpo, inventamos máquinas que facilitam nossa vida, pensamos sobre o nosso destino e para que servimos, ouvimos sábios que parecem saber quem somos, a que estamos destinados. Produzimos ideias em que, no fim dos confrontos finais, o homem se tornaria senhor de si mesmo, um ser divino, livre de classes, acima da natureza, num paraíso que haveríamos de construir por aqui mesmo. Mas vai chegar a hora em que teremos de contemplar com franqueza as nossas fraquezas, colher de nossos defeitos a virtude possível, construir um novo mundo do qual seremos o centro não triunfal. Nos daremos o direito de chorarmos nos ombros uns dos outros, iguais tão dessemelhantes.

Pode ser que eu esteja pirando, mas, apesar de tudo, ainda acho que o Brasil pode ser, quem sabe, um espaço de redenção, território experimental para a humanização da humanidade. Sei que ainda somos racistas e bárbaros, que somos corruptos e corruptores, que humilhamos o mais fraco sempre que está a nosso alcance. Mas não são esses os nossos mitos fundadores — e, onde há mito, há sempre um projeto inconsciente. Ele talvez esteja em nossa permanente esperança de sermos o futuro.

Os milhões de cidadãos jovens que foram às ruas nas jornadas de junho de 2013 iluminaram o Brasil com essa esperança. Em pânico, os políticos convencionais correram a prometer mudanças em que não acreditavam. Mas, entre a violência da polícia e a estupidez dos black blocs, perdemos o rumo das coisas e os políticos respiraram aliviados, não se sentindo mais obrigados a realizar o que haviam prometido na hora do aperto.

Na campanha política cuja primeira parte se encerra hoje, evitou-se cuidadosamente esses assuntos delicados, os temas de junho. Os candidatos preferiram a difamação mútua, o rancor de baixo nível, as ofensas pessoais, o marketing da porrada, como se o eleitor tivesse que escolher um lado diante de um combate de UFC. Como em junho, eles descobrirão um dia que os maiores inimigos do conformismo que os imobiliza são o acaso e o que ainda não sabemos.

Mesmo sem euforia, já sei como vou votar hoje, já andei espalhando por aí os nomes de meus favoritos. Mas a vitória de meus candidatos não é o mais importante. O que importa é que ainda quero ver por aqui as manhãs que cantam, a luz do sol sobre o horizonte, a primavera chegando sem avisar.

 

Publicado aqui, na globo.com

 

 

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Este post tem um comentário

  1. sandra.maria

    Policial acuado ,desprestigiado e ameaçado,precisa ser extremamente frio,difícil isso.

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