O amor ficou naquele janeiro de 2003, onde Lula e FH trocaram juras que jamais serão

ódio

 

 

Jornalista Arnaldo Bloch
Jornalista Arnaldo Bloch

O discurso do ódio

Por Arnaldo Bloch

 

Pegadinha rápida: quem era a pessoa mais feliz no Brasil quando Lula foi eleito pela primeira vez, em 2002? Essa é fácil: Fernando Henrique Cardoso. O então presidente deu gelo em José Serra durante a campanha e cochichou publicamente que era a hora de Lula lá.

FH havia trazido a estabilidade e a base de muita coisa boa, mas acabou imerso na espuma fisiológica. Governou com aliados degenerados, e os sonhos tucanos mais libertários comungaram com a herança maldita dos anos de chumbo. Isso ocorreu pela impossibilidade de um amor platônico: a união PT-PSDB, sonhada por muita gente sensata dos dois lados.

Em êxtase cívico, FH deu um abraço de camarada em Lula e, na hora de passar a faixa, trêmulo, quase que se enforca na flâmula verde-amarela. O amor ficou ali, naquele momento nacional simbólico.

Aquela campanha de 2002 havia sido marcada, já, pelo chamado Discurso do Medo. Regina Duarte previa inflação de Alemanha pré-Reich, quando, em Berlim, se trocava uma batata por milhões de marcos. Lula teve que escrever uma carta, passou a usar terno fashion, implantou sorriso Kolynos, aparou a barba e juntou à estrela petista o lema dos hippies: Paz e Amor.

Assim a coisa andou. Não houve rupturas de contratos nem crise institucional. Com popularidade inédita, Lula, mesmo tentado, recusou o cálice autoritário e cedeu ao vigor democrático que já vinha irrigando o país.

Mas cedeu também à tal da base aliada com gosto de podrão, e, com crescimento alto, grana entrando, popularidade mantida, perdeu a chance de entubar o vicioso Congresso Nacional com as reformas política e tributária.

Porém, o país cresceu, distribuiu, os banqueiros ficaram na boa, a classe média, como sempre, ralou, mas seguimos. No campo político, houve retrocesso, e, em vez de lançar um paradigma de correção, Lula disse que é mesmo assim, que a gente bota a mão na lama e vai ser desse jeito por muito tempo.

O que vemos hoje? Passados quatro anos do governo da sua sucessora, o abismo se consolidou: PT e PSDB jamais estiveram tão longe. Na gritaria insana em que se transformou o debate, o que de bom houve nos anos FH-Lula parece um vapor distante. Dilma e Aécio parecem alunos com pirulitos.

Se estivessem num ringue, seriam apresentados como Dilma, do PT, república sindical que aparelhou o país e fez o que o PCB nunca conseguiu, isso dentro do jogo democrático, e hoje representa a esquerda totalitária. Do outro lado, Aécio, playboy da Zona Sul mais burguesa, à frente dos anseios do PSDB, partido que um dia inspirou grandes transformações, representa a direita e os liberais anarcocapitalistas de extrema.

O Discurso do Medo voltou na campanha do primeiro turno, mas, aos poucos, foi substituído por um outro discurso, mais perigoso: o Discurso do Ódio. É esse que predomina nas ruas, nas redes, no horário gratuito e nos debates. Se a esperança seria o antídoto ao medo, contra o ódio não há remédio.

Para Aécio — que, no primeiro turno, juntara-se a Dilma para massacrar Marina qual uma barata ecochata —, o país precisa se libertar do jugo da máfia vermelha. Para Dilma, o país precisa purgar o fantasma de uma extrema-direta preconceituosa que odeia pobres e planeja, na calada da noite, o holocausto das conquistas sociais. Comandados pelos seus candidatos, os eleitores se xingam, desfazem amizades, bloqueiam-se, fabulam (essa é a palavra da hora, e Goebbels virou carochinha), engolem excremento e, como numa batalha medieval, erguem espadas sedentas das jugulares do próximo.

No abismo fica um vazio: temas críticos são varridos para a base do vulcão. Não se fala de aborto. De células-tronco. De homofobia. De drogas, só sob o viés repressivo, virando as costas para o mundo.

Não se discutem políticas públicas. Bate-se na tecla dos escândalos que são endêmicos desde que o Brasil é Brasil. O PT é o escândalo em si, e o tucanato é uma espécie de Santa Sé (que, aliás, é boa de escândalo também). Ou, ao avesso, PT é a própria providência salvadora eterna da pátria, e o PSDB é o Reich às vésperas de anexar a Polônia e rumo a Moscou.

O que fica disso tudo? Tristeza. Melancolia. Um país partido em polos que podiam dialogar, mas duelam à morte. Para Dilma viver, o PSDB tem que morrer. Para Aécio sobreviver, o PT tem que ser varrido da História. Ganhando um ou outro, em que clima governará? De que maneira o brasileiro vai dialogar com si próprio, se não é capaz de trocar IDEIAS, só de impor a verdade final dos tempos?

Claro que o Brasil, e a democracia, vão, mais uma vez, sobreviver ao medo e ao ódio. Mas, seja qual for o resultado, o país provará da herança maldita do desamor. O amor ficou naquele janeiro de 2003, na rampa, onde Lula e FH trocaram juras que jamais serão.

 

Publicado aqui, na globo.com

 

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