Conheço a Manuela Cordeiro, 29 anos, desde que ela era ainda uma adolescente. Trabalhava com seu pai, o jornalista Celso Cordeiro Filho, quando este disse que a filha também arriscava versos e me convidou a acompanhá-lo a um festival estudantil de poesia do Auxiliadora, do qual ela participaria. Curioso da produção das gerações posteriores, fui conferir e me impressionei de cara com a maturidade da sua poesia, pela já qual se via alguém precocemente esclarecido sobre a arte de versejar como fim em si mesma, além do narcisismo de quem não sabe projetar além de um confessionário de padre, ou divã de psicanalista, ao escrever um poema.
De fato, desde seu início, foi o outro que empurrou Manuela aos versos. Em sua prosa: “A poesia entrou na minha vida na infância para tentar expressar, em versos, o meu sentimento de perplexidade face às vidas perdidas de outras oito crianças, na chacina da Candelária de 1993”. Talvez antes mesmo de ler Walt Whitman (1819/92), sua colega campista estivesse precocemente ciente da lição encerrada no verso do vate estadunidense: “the other I am” (“eu sou o outro”).
Depois dos festivais estudantis, na transição da sua adolescência à juventude, cruzei sempre com Manuela nos FestCampos de Poesia Falada do início dos anos 2000, quando o Palácio da Cultura ainda abrigava cultura, diferente dos tristes dias atuais. Foi mais ou menos por essa época, na edição do Festival Drummond Cem Tempo, em 2002, numa homenagem organizada pelo também poeta Fernando Leite ao centenário de Carlos Drummond de Andrade (1902/87), realizado no auditório do antigo Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Campos, hoje Instituto Federal Fluminense (IFF), que participei e vibrei muito com a conquista do primeiro lugar, em meio a tanta gente boa adulta, pela menina de apenas 16 anos. No mesmo ano, em Washington, ela participaria de um encontro internacional de jovens poetas na capital dos EUA.
Paralelamente à poesia, Manuela desenvolveu sua carreira acadêmica com brilho semelhante. Do Auxiliadora, ela se graduou em ciências sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), após um intercâmbio na Fairfield University, em Connecticut (EUA). Daí, a campista ganhou o Rio, onde fez mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e o Norte do Brasil. Sua primeira parada foi em Tocantins, onde passou oito meses trabalhando como consultora de uma ONG de Campinas (SP), no diagnóstico e fomento a conselhos comunitários em Araguaína e Xambioá, região próxima ao Bico do Papagaio, nas margens do rio Araguaia, famosa pela luta de guerrilha do PC do B, entre 1968 e 74, contra a Ditadura Militar no Brasil (1964/85).
Concluído o mestrado, a poeta investiu no doutorado em antropologia pelo Museu Nacional e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi morar outros seis meses em Rondônia, onde desenvolveu sua tese sobre o processo de ocupação da região de Ariquemes, em homenagem à tribo extinta dos índios arikeme, a partir das políticas do governo militar da década de 1970. Com doutorado concluído na academia e na paixão pelo Norte do Brasil, onde, segundo ela, “aprendi a comer pimenta, a saber o que é farinha de qualidade, a celebrar os rios, igarapés e outros corpos de água”, a opção foi o concurso para o magistério na Universidade Federal de Roraima (UFRR), em Boa Vista, única capital de estado brasileira no hemisfério norte do globo, onde a goitacá mora e trabalha desde 2013.
Na poesia, Manuela guarda como principais influências o pernambucano João Cabral de Melo Meto (1920/99), o matogrossense Manoel de Barros (1916/2014) e o amazonense Thiago de Mello, três autores cuja universalidade se fundamenta no regionalismo e no canto à natureza dos seus versos. Dos poemas que ela enviou a pedido do blog, todos de quando seus “espíritos vivos” ainda não faziam morada no Extremo Norte do país, a escolha recaiu sobre aquele cujas palavras comungam um pecado: “ser pedaço de flor e ainda ter seu perfume celebrado”.
Confira abaixo:
Poema surdo
A minha casa é a morada dos meus espíritos vivos:
Minhas feridas e o tempo tecido.
Tempo tecido que é teia vã
E marca o trabalho de tecer a cicatriz de amanhã.
Rezo baixo a maculação dos meus passos
diretos, indiretos, esparsos.
Nessas palavras comungo o pecado:
de ser pedaço de flor e ainda ter seu perfume celebrado.
As mesmas mãos cansadas, em versos sintéticos debruçadas
são de repente uma estrofe incompleta.
Minha pobre tinta aquecida na chama da linha solitária
mata a minha sede, mas não cura a minha cara.
A poeira da minha casa empoleirada
na janela da calçada, na porta aberta por esquecer.
Escrever por recorrer não é nada,
triste é quem vive a poeira de sua casa a esconder.
Minhas letras largadas, meu tempo alagado de sonhos,
minhas costas enlanguescidas.
O poema se larga de mim e se alaga, espaço, sufocado
que quando sai para ser lido, poema surdo
já é muito largo para ser título
e pequeno demais para ser tudo.
2006
Que beleza, que leveza, que talento!
Caro Fernando,
Antes tarde do que nunca, lembro da gente conversando sobre o talento precoce da Manuela naquele Festival Drummond Cem Tempo. E não é que a a gente estava cheio de razão: a promessa virou realidade. Aliás, como ela venceu aquele festival, já era desde então… rs
Abç e boa nova semana!
Aluysio
Que beleza, que leveza, que talento!
Que beleza, que leveza, que talento!
Sim, sim, sim… Eu digo, eu repito e repetirei ad eternum, a Poesia é essencial para o nosso viver. E tenho que dizer uma coisa mais ou menos óbvia, essa menina Manuela Cordeiro é muito ótima! Ela renova a minha esperança num mundo melhor, onde a atmosfera estará impregnada de mais e mais Poesia.
Caro Provisano,
Sim, sim, sim, poesia é essencial e Manuela é “muito ótima” poeta!!!… Rs
Abç fraterno!
Aluysio
E se não fosse o seu blog, tão cedo ou talvez nunca, viesse a saber de tão bonita e melancólica poesia. Ou seja: continue. E traga mais versos dela e de tantos desconhecidos e talentosos poetas.
Caro Nino,
Se estas postagens dominicais de poemas no blog se prestaram a isso, cumpriram sua função.
Abç!
Aluysio