Na democracia irrefreável das redes sociais, o perfil no Facebook (aqui) do advogado, publicitário e crítico de cinema Gustavo Alejandro Oviedo, argentino caído em Campos, tem servido de referência sobre a reviravolta política na Argentina, com a aparente derrocada do kichnerismo na eleição presidencial do país do último domingo (22), indicando dias difíceis à frente para movimentos populistas como o chavismo bolivariano na Venezuela, o evomoralismo na Bolívia e o lulopetismo, no Brasil.
A pedido do blog, Oviedo escreveu sobre as analogias possíveis do que ocorreu em seu país com o futuro da América do Sul. Confira abaixo o que pensa quem considera o kichnerismo mais próximo ao garotismo, reduzido à esfera de Campos, do que ao lulopetismo, cada vez mais reduzido à esfera criminal, com as prisões do pecuarista José Carlos Bumlai, amigo íntimo do ex-presidente Lula (PT), e do ex-líder governista no Senado Federal, Delcídio do Amaral (PT-MS), respectivamente nas últimas terça (24) e quarta(25):
A Queda do Reino Kirchnerista
Por Gustavo Alejandro Oviedo
O resultado das eleições argentinas, que deram a vitória ao prefeito da cidade de Buenos Aires, Mauricio Macri, foi uma agradabilíssima surpresa para aqueles que, como eu, achavam que o kirchnerismo ia conseguir se impor por mais quatro anos. Tinha motivos para ficar desiludido: os institutos de pesquisa prognosticavam, para o primeiro turno, uma vantagem de quase dez pontos em favor do situacionista Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires (não confundir a cidade com a província), que o colocava a beira da triunfo já na primeira volta.
É interessante saber como Scioli acabou representando o kirchnerismo para suceder Cristina Kirchner, pois o episódio é uma boa amostra da hipocrisia, do autoritarismo e do oportunismo ideológico que representa esta ala do movimento peronista. Em 2011, por iniciativa do kirchnerismo, é aprovada no congresso a lei das Paso (Primarias Abiertas Simultáneas y Obligatorias) que obriga a todos os partidos políticos a celebrarem, numa mesma data, suas eleições internas, e também obriga aos cidadãos escolherem um partido e seus candidatos. Você leu certo: num determinado domingo, os argentinos devem comparecer às urnas para elegerem os políticos de um partido que irão preencher as vagas de candidato para a próxima eleição. Desta forma, as Paso resultam ser nada menos que a maior enquete de intenção de voto do mundo, pois o resultado informa o posicionamento dos partidos e seus percentuais, sendo que o universo pesquisado atinge 100% dos eleitores.
Pois bem, após instituir as Paso, a presidente Kirchner decide que seu partido não participará delas, no que se refere à escolha de candidato a presidente. Determina que este será Daniel Scioli, e ordena ao outro pré-candidato, o seu ministro Florencio Randazzo, que desista de concorrer.
Scioli é uma figura que em muitos aspectos lembra o personagem de Peter Sellers no filme “Muito Além do Jardim”. Um sujeito medíocre e insosso que surfou na onda das oportunidades que a vida política lhe ofereceu, sem nunca ter emitido uma opinião interessante ou original sobre nada. Não lhe foi mal: foi deputado, vice-presidente, governador e, não fossem três pontos percentuais, quase presidente.
Mas antes de Scioli ser o candidato de Cristina, ele era visto dentro do núcleo kirchnerista como um “outsider” no movimento. Um parceiro desagradável. Um cara que, embora peronista, não compartilhava os ideais progressistas de centro esquerda. De fato, o programa “6,7,8” que se emite pela TV pública e que funciona como o porta-voz da Casa Rosada, até pouco tempo atrás atacava Scioli, chamando-o de “candidato do FMI” junto com o agora presidente eleito Macri. Bastou Cristina determinar que ele era o escolhido para que toda a corte mudasse automaticamente de opinião.
Reviravoltas ideológicas deste tipo não são novidades no kirchnerismo: o cardeal Bergoglio era uma figura detestada pelo matrimonio Kirchner (a presidente negou todos os pedidos de reunião que o prelado solicitava) até o instante em que foi ungido como o Papa Francisco. Bergoglio, aos olhos da militância “K”, passou de cúmplice da ditadura a ser motivo de orgulho para os argentinos.
Mas o kirchnerismo não será apenas lembrado pelos seus princípios inconsistentes. A prepotência, a mentira e a corrupção também formam parte da sua essência, assim como um discurso progressista vazio que, enquanto fala de conceitos como “justiça social”, “independência econômica” e “luta contra as corporações”, aproveita para mentir sobre os índices de inflação, roubar descaradamente e atropelar os poderes judiciais e legislativos.
Há uma desconexão tão profunda entre o relato oficial e a realidade que provoca reações insólitas por parte dos funcionários do governo. Numa entrevista recente, o ministro de economia Axel Kiciloff justificou a falta de dados oficiais sobre a pobreza na Argentina porque, segundo ele, contabilizar quantos pobres existem no país seria “estigmatizá-los”.
Não é possível estabelecer similaridades entre o kirchnerismo e o PT. Apesar de todos seus escândalos, os governos Lula e Dilma estão a anos luz do nível de infâmia que representaram os últimos doze anos de governo K. Sei que isto não é mérito exclusivo do PT: no Brasil o equilíbrio entre os poderes do governo é muito mais forte em comparação com o hiper presidencialismo argentino, onde o chefe do Executivo consegue se colocar por cima de seus colegas dos poderes Legislativo e Judiciário.
Para exemplificar, diga-se que na Argentina é inimaginável a existência de um processo como o da Lava-Jato, onde magistrados, promotores e agentes da Polícia Federal investigam com independência as irregularidades de uma administração que ainda não acabou. Em fevereiro deste ano, o promotor argentino Nisman, um dia antes de depor no Congresso acerca de suas investigações sobre as relações entre o Irã e funcionários do governo local, foi encontrado suicidado dentro de seu apartamento de Puerto Madero.
O kircherismo se coloca num ponto da escala entre o bolivarianismo venezuelano e a esquerda moderada — mais pra lá do que pra cá. É uma combinação do clássico populismo peronista, que entende que os pobres devem ser reféns políticos permanentes do assistencialismo, misturado com um discurso progressista que enamora alguns artistas e intelectuais (mas que na prática é absolutamente ineficaz) somada à convicção de que democracia é a ditadura da maioria. O equivalente mais próximo ao kirchnerismo no Brasil não é o lulopetismo, mas o garotismo.
Não sei como virá a ser o governo de Macri, mas pensar que será diferente do atual já é motivo para me deixar feliz. Na última terça, após o resultado do segundo turno no domingo, a presidente Kirchner chamou o vencedor para uma reunião na residência oficial. Parecia ser o começo de uma transição civilizada. Mas Cristina determinou que Macri aparecesse sozinho, e que o encontro fosse a portas fechadas. Por determinação da presidente, não houve fotos da reunião e também não permitiu que Macri utilizasse a sala de imprensa para falar com os jornalistas.
Foi uma conversa de 20 minutos onde ela avisou para o seu sucessor que os seus ministros só estarão à disposição do novo presidente a partir do dia 10 de dezembro, ou seja, após o fim do mandato de Cristina. Na prática, significa que não haverá transição alguma.
Depois dela, o caos. Esse é o legado de Cristina Kirchner para o seu amado povo.
Inspirado no texto, tenho outra sugestão à série “recordar é viver” do blog, até numa homenagem a certos tipos asquerosos e, alvissareiramente, cada vez mais desconhecidos:
http://www.fmanha.com.br/blogs/opinioes/2009/12/16/endosso-na-velocidade-terrivel-da-queda/