Poema do domingo — Pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos por Almada Negreiros
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos por Almada Negreiros

 

 

Pessoas - Adriano
No ensaio de “Pessoas”, Adriano Moura e Ophélia Queiroz, noiva de Pessoa (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

Quando no aniversário de uma pessoa amiga e dotada de sensibilidade, tenho costume de saudar a data com o poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, heterônimo mais modernista do poeta Fernando Pessoa (1888/1935), por sua vez o maior nome do Modernismo de Portugal. Mas eis que, na última sexta-feira, 11 de dezembro, quando completou 43 anos, o aniversariante inventou de inverter a ordem natural das coisas para ofertar ele o presente. Além de ter compilado a obra de Pessoa (do próprio, além de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, demais heterônimos poetas), para dirigir e produzir o espetáculo “Pessoas”, o professor, escritor e dramaturgo Adriano Moura também atuou nele como ator, ao lado de Tim Carvalho, Renato Arpoador e Matheus Nicolau. E, no dia do seu aniversário, o ponto alto da interpretação de Adriano, “com uma nitidez que cega”, foi justamente o poema “Aniversário”.

Abaixo, seguem o poema e sua declamação referencial por Paulo Autran (1922/2007). E se não é mentira que Adriano nunca foi, como ator, o mesmo que é enquanto autor, a partir desse seu aniversário literário e literal, essa é uma verdade que deve começar a ser revista. A conferida, assim que o espetáculo retornar a cartaz em 2016, é um presente que cada um pode dar a si e depois levar pela vida como “passado roubado na algibeira”.

 

 

Atafona, tarde de 12/12/15 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
Atafona, tarde de 12/12/15 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Aniversário

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…

A que distância!…

(Nem o acho…)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

 

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

 

Lisboa, 15/10/1929

 

 

 

 

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Este post tem 7 comentários

  1. Arthur Soffiati

    O fantástico em Pessoa é a capacidade que ele tem de dizer com profundidade o que desejamos dizer e não conseguimos. Ele fala por mim. Ele fala por nós. Na idade em que estou, aproprio-me deste poema como meu.

    1. Aluysio

      Meu capitão,

      Lembro que, desde mt criança, era fascinado pelas marcas de rodas nas ruas de terra ou areia. Mas nunca entendi muito bem por quê. Até que li Álvaro de Campos: “O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras”.

      Abç e grato pela chance do diálogo tardio!

      Aluysio

  2. Savio M. Gomes

    Caramba! Que coincidência, ou seria o “princípio da sincronicidade”? Passei a tarde ouvindo Maria Bethânia e Cleonice Berardinelle no imperdível “O Vento Lá Fora”, com os poemas do Fernando Pessoa, nestas duas intérpretes poderosas! E me arrepiei com “Aniversário”, ouvi várias vezes, porque, afinal, tive que ceder à realidade. Agora vou ver o vídeo do mesmo show, coisa de endoidecer, de tão vibrante!

    1. Aluysio

      Caro Savio,

      Não creio em coincidências. Muito menos em arte. Menos ainda em Fernando Pessoa. Assisti a “O vento lá fora” na Estação Botafogo, no Rio, e modestamente endosso sua recomendação.

      Abç e grato pela chance da concordância!

      Aluysio

      P.S. Não deixe tb de conferir a interpretação de Adriano Moura de “Aniversário”, quando “Pessoas” voltar a cartaz em 2016.

  3. adriana

    Salve o poeta das sensações!Aquele que busca uma compreensão do seu universo tentando , como nós,precisar a sua criação.
    Amo aquele que é amigo do menino Jesus, mas o quer livre do controle da igreja e sem o peso dos séculos de história que o cercam.
    Sinto-me mais “pessoa” quando leio Pessoa.Sinto-me mais feliz quando tenho o privilégio de ter pessoas como “Dimoura” e você nos presenteando com tanta precisão para que saibamos que” navegar é preciso, viver não é preciso.”

    1. Aluysio

      Das Preta,

      Salve Pessoa, aliás Álvaro de Campos! E salve Das Mouras, seu arauto! Qt ao poema do Menino Jesus, da lavra de Alberto Caeiro, é o oitavo de “O guardador de rebanhos”. Segue abaixo seu link de qd o publiquei cá no blog, num desejo atrasado, mas sincero, de feliz Natal: http://www.fmanha.com.br/blogs/opinioes/2014/12/24/feliz-natal-2/

      Bj e um 2016 de luz!

      Aluysio

  4. Adriano Moura

    Obrigado, Aluysio, por tão feliz lembrança. “Pessoas” retornará também em 2017 com algumas mudanças estéticas.

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