Era o último dia daquele 2013. O ano não havia sido dos melhores, mas tampouco dos piores, sobretudo pelo que deixara em definitivo para trás. Ademais, o novo calendário que se iniciaria a partir do dia seguinte traria uma Copa de Mundo de futebol no Brasil, a primeira desde a tragédia de 1950, e a chance de reconhecer nas urnas a falência do lulopetismo, alternando democraticamente o desastroso governo Dilma Rousseff.
Não fosse mais nada, estava no Rio, no enclave de pedra do Arpoador de Cazuza, entre Ipanema e a Copacabana que seria palco, a poucas horas, de um dos réveillons mais concorridos do mundo. Com o pote coletivo dos adultos perto de encher precocemente com os chopes do Informalzinho na Francisco Otaviano, que depois se mudaria dali, veio a sábia sugestão ao grupo, que as crianças adoraram, para tomarem um banho de mar todos naquele final de tarde, visando recobrar forças antes de uma noite e madrugada que prometiam.
Como seu filho já era adolescente e bom nadador, o deixou com os outros dois amigos adultos e seus respectivos filhos, ainda crianças, à beira da praia. Afastou-se deles em braçadas lentas até a parte mais solitária e profunda do Arpoador. Após nadar aluns minutos mirando às ilhas Cagarras, se virou e divisou seu grupo quase indistinto pela distância e luz já escassa, com crianças, adolescentes e adultos brincando em meio a outros banhistas, na comunhão praiana da parte mais rasa.
Relaxou o corpo com aquela visão, deixando-se boiar no leito sereno do mar, inebriado pelas carícias de Iemanjá sobre seu corpo e cabelos, “à deriva da última tarde do ano”. Antítese do João Valentão de Caymmi, só despertou dos sonhos do “sono dos peixes” quando as gotas gordas de chuva caíram sobre os olhos cerrados e escorreram pela boca semiaberta, lavando com água doce o sal dos seus lábios.
Olhou para a praia e seu grupo ainda estava lá. Virou-se de bruços sobre o mar, quebrou a coluna em ângulo de 90º e, com a experiência dos mergulhadores, deixou a gravidade levar-lhe naturalmente às profundezas. Doídos pela pressão que aumentava a cada metro de água vencido pelo movimento grave das pernas, os tímpanos ficaram atentos ao barulho próximo do motor a diesel de uma embarcação no final do horizonte.
Mais guiado pelo tato que pela visão, penetrando a água escura perto do pôr do sol, percebeu ter chegado ao fundo. Tomou um punhado da sua areia com a mão direita, verbalizou em sua mente o que tinha de dizer a quem achou que devia ouvir e voltou sem pressa à superfície. Só lá abriu os dedos para ver escorrer entre eles a areia liberta lentamente de volta ao oceano. Purificado nesse rito todo pessoal, nadou de volta à praia, em direção a mais um ano.
Como na música cantada pela filha de quem compôs ambas, emergiu do mar um homem que não precisava mais dormir pra sonhar…
réveillon
dorso sobre o dorso das ondas
calmas, d’além da arrebentação
arrepiou ao cafuné de iemanjás
à deriva da última tarde do ano
despertou do sono dos peixes
na fisga doce da chuva à boca
mas joão, com valentia de água
sonhou acordado todas as cores
arpoador trespassou sua alma
em oferenda na ponta da pedra
e seu corpo no tato de um cego
doeu ouvidos atentos ao barco
pegou a areia do fundo na mão
rio, 02/01/14
A fotografia registrou a superfície. O poema ficou no profundo, a palavra nos re-vela a espuma.
Caro Savio,
Sua generosidade para com a foto e os versos é que desceram para além da espuma.
Feliz 2016!
Aluysio
Aluysio,
A Copa de 2014 não veio, Dilma ficou em 2015 e o Brasil lamenta ambos.
Mas “João Valentão”, como faz há mais de 50 anos, segue nos mostrando que a verdadeira felicidade está nas coisas simples e que todos podemos encontrar nossos ‘momentos na vida’, prestando atenção… QUANDO O SOL VAI QUEBRANDO / LÁ PRO FIM DO MUNDO / PRA NOITE CHEGAR / É QUANDO SE OUVE MAIS FORTE / O RONCO DAS ONDAS / NA BEIRA DO MAR…
Parabéns pela sutil sensibilidade de trazer tão bela música neste momento de recomeço.
Abs, Guilherme Belido
Caro Guilherme,
Realmente, ainda pior do que a humilhação dos 7 a 1 impostos pela Alemanha na Copa, talvez tenha sido o estelionato eleitoral que manteve Dilma Rousseff no poder. Menos mal porque qualquer oposicionista que tivesse vencido, inevitavelmente seria responsabilizado pela quebra do Brasil já consumada na corrupção e incompetência generalizadas do lulopetismo, tornando mais difícil seu sepultamento definitivo nas urnas de 2018 — ou antes, num impeachment cada vez mais improvável. Diante de quadros tão desalentadores ao nosso futebol e nosso país, sim, meu amigo, é redentora a didática que Caymmi leciona há mais de meio século, em seu “João Valentão”, nesse recomeço que habita o sentir as coisas simples da vida.
Grato pela generosidade e um ótimo 2016!
Aluysio