Poema do domingo — “são os ff da cidade/ um furtar, outro foder”

Mais uma vez sem tempo ou inspiração para trazer algo inédito neste “Opiniões” àqueles que se habituaram a buscar e encontrar poesia aqui aos domingos, o blog recorre aos seus arquivos para uma reprise sempre necessária, de um texto publicado originalmente aqui, há mais de quatro anos. Enquanto o desavisado poderá se surpreender com a ousadia verbal da poesia barroca no Brasil do séc. XVII, não custa tentar descobrir, depois que passar o eventual susto, de quantos “ff” se compõem, quatro séculos depois, a definição da sua própria cidade:

 

 

Cais de epeixaria ao lado da Igreja Nossa Senhora da Penha, no final da tarde de 14/01/16, em Atafona (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
Cais de peixaria ao lado da Igreja Nossa Senhora da Penha, no final da tarde de 14/01/16, em Atafona (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Reconhecidamente nosso maior poeta barroco e, na irrelevante opinião deste blogueiro, o maior talento já produzido pela poesia brasileira, Gregório de Matos Guerra (1636/95) mais uma vez aparece (aqui) para cadenciar o ritmo neste espaço em que a prosa, em respeito ao dia mais nobre de domingo, cede vez aos versos.

Para endossar a importância, a incrível atualidade e a surpreendente ousadia verbal do autor também conhecido em vida como “Boca do Inferno”, após ler abaixo um dos seus poemas mais conhecidos, tente você, leitor, sobretudo se campista, acatar a sugestão do título para definir também esta nossa cidade, assim como o poeta fez com a sua há 400 anos. E, neste raciocínio, aproveite e me responda: de quantos “ff” se compõe mesmo C-A-M-P-O-S-D-O-S-G-O-I-T-A-C-A-Z-E-S???…

 

 

Gregório de Matos

 

 

Define sua cidade

 

De dois ff se compõe

esta cidade a meu ver:

um furtar, outro foder.

 

Recopilou-se o direito,

e quem o recopilou

com dous ff o explicou

por estar feito, e bem feito:

por bem digesto, e colheito

só com dous ff o expõe,

e assim quem os olhos põe

no trato, que aqui se encerra,

há de dizer que esta terra

de dous ff se compõe.

 

Se de dous ff composta

está a nossa Bahia,

errada a ortografia,

a grande dano está posta:

eu quero fazer aposta

e quero um tostão perder,

que isso a há de perverter,

se o furtar e o foder bem

não são os ff que tem

esta cidade ao meu ver.

 

Provo a conjetura já,

prontamente como um brinco:

Bahia tem letras cinco

que são B-A-H-I-A:

logo ninguém me dirá

que dous ff chega a ter,

pois nenhum contém sequer,

salvo se em boa verdade

são os ff da cidade

um furtar, outro foder.

 

 

Poema do domingo — Intervalo do azul

Sem tempo para escrever algo novo, mas devedor dominical deste “Poema do domingo”, busco versos e sua prosa de apresentação numa postagem anterior do blog, de agosto de 2011, tempo de outro batismo. Antes tarde do que nunca, confira aqui e na transcrição abaixo:

 

Capa da edição de 2002 de “Todos os ventos”, pela Nova Fronteira, de Carlos Alberto Secchin
Capa da edição de 2002 de “Todos os ventos”, pela Nova Fronteira, de Carlos Alberto Secchin

 

Tornado poeta a partir de um conhecimento profundo de poesia, o carioca Antônio Carlos Secchin (12/06/1952) é doutor em Letras pela UFRJ, onde leciona Literatura Brasileira. Ocupa também a cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras. Travei contato com ele a partir de um toque do professor de História e amigo Gustavo Soffiati, que identificou semelhanças de fraseado entre os versos dele e os meus, em analogia superestimada da minha lavra.

Considerado por João Cabral de Melo Neto (1920/99) como seu melhor crítico, Secchin exibe em sua própria poética a face bem delineada do ávido leitor. E foi nesta condição que devorei seu “Todos os Ventos” (Nova Fronteira, 2002), livro com o qual gentilmente me presenteou, chegando depois a lhe confessar que “silêncio de âncora” é um dos versos mais belos que conheço escritos em língua portuguesa, ou em outra qualquer.

Abaixo, para semear um “intervalo do azul” neste domingo, segue o poema completo:

 

 

Tarde de 10 de janeiro em Atafona (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
Tarde de 10/01/15, Atafona (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Palavra

 

Palavra,

nave da navalha,

invente em mim

o avesso do neutro.

Preparo para o dia

a fala, curva do finito

num silêncio de âncora.

Atalho onde me calo

e colho, como a um galo,

o intervalo do azul.