Artigo do domingo — Até o sol nascer

Atafona, aurora de 26/02/16 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
Atafona, aurora de 26/02/16 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Beque de roça tecnológico, pedi a Antunis Clayton que levasse um gravador e me emprestasse para a entrevista. Ao contrário do hábito, não preparei pauta, nem estudei vida e carreira do entrevistado. Julgava ser capaz de fazê-la bem, só batendo de prima da memória.

“Entre as curvas da estrada e do rio” encarnado verso em “epifania”, ouvíamos a guitarra de blues do inglês Matt Scofield e subíamos o Paraíba do Sul. Já escrevi (aqui) que a RJ 158, entre Campos e São Fidélis, está entre as mais lindas que conheço, junto da Turmalina/Diamantina, trecho da BR 367 no norte de Minas Gerais; da Esparta/Olímpia, no Peloponeso (GRE); e todos os caminhos das Highlands (“Terras Altas”) da Escócia e do sul da Toscana (ITA), que chegam e saem de Siena — linda cidade que batiza um carro feio.

Chegados ao sítio do deputado federal Paulo Feijó (PR), Antunis saca da sua mochila o gravador. Eu me espanto e Tércio Teixeira, o repórter fotográfico, ri, ao perceber que se trata de um daqueles antigos “tijolões” de fita cassete. Completava o anacronismo o elástico improvisado no lugar da tampa, para as pilhas não caírem.

Após pensar, constatei que o tempo do qual falaríamos era o mesmo da tecnologia que nos gravaria o som. E por isso ri também, num alívio curioso e involuntário. Entramos e caminhamos ao longo da antiga linha de trem e do rio, até avistar homens de meia idade brincando como crianças dentro e ao redor da quadra de futevôlei, enquanto crianças de verdade corriam alheias ao entorno.

A primeira entrevista, no deck da piscina ao lado da quadra de areia, foi com o ex-atacante Cláudio Adão. Meu pai me dizia que, quando ele surgiu, ainda garoto, no Santos dos anos 1970, era apontado como o sucessor de Pelé, que ainda jogava, já perto de encerrar a carreira. Ademais, me lembro com vista própria de Adão jogando no Flamengo de Zico, entre o final dos anos 70 e início dos 80, no qual se notabilizaria outro centro-avante de menos técnica, mas decisivo: Nunes.

Lançado também no Flamengo, ainda com Zico, Leandro e Andrade, na segunda metade dos anos 1980, meu objetivo se mostrou à primeira vista esquivo e tímido, como sempre me pareceu ser nos tempos de jogador. A impressão foi reforçada quando começamos a entrevista, onde aos poucos, ao perceber o conhecimento de pormenores das suas jogadas e carreira, foi se soltando o ex-zagueiro Aldair, do Flamengo, Benfica (POR), Roma (ITA) e Seleção Brasileira, Tetracampeão do Mundo na Copa de 1994, na qual foi um dos destaques.

Acabamos a entrevista (aqui), apertei sua mão e disse: “Você foi o maior zagueiro que vi jogar!”. Despedimos-nos dele e dos demais, e saímos logo depois. Como estávamos já no início de tarde de sábado, sabia que a entrevista só daria para ser degravada e editada no correr da semana seguinte.

São engraçadas as impressões de uma entrevista que fizemos. Geralmente temos uma opinião sobre ela quando a acabamos, outra depois que a tiramos do gravador e uma terceira após a lermos impressa. Com Aldair, me valeu como segurança o que disse o Tércio logo depois da entrevista, que acompanhou com olhos atentos na câmera e ouvidos ao papo: “Vocês foram ficando visivelmente emocionados, principalmente quando começou a relembrar nas suas perguntas os detalhes dos lances dele no campo”.

Com a semana seguinte cheia de trabalho laico, apesar de santa, aproveitei o feriado da Páscoa para ir a Atafona, com meu filho e seu cão, um buldogue francês tigrado chamado Zidane, desde a noite da Quinta-Feira da Ceia. Na Sexta da Paixão, dediquei manhã e início da tarde à pauta de outra entrevista (aqui), mais técnica, mas também mais prática, porque por e-mail, sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), com o advogado tributarista Carlos Alexandre de Azevedo Campos, ex-assessor do Supremo Tribunal Federal.

No resto da tarde de sexta, noite e início da madrugada, tirei do gravador, editei e fiz a abertura da entrevista com Aldair. Irônico, mas de crença difícil, foi o fato que, no mesmo quarto onde meu filho já dormia, ao final da degravação, exatamente quando Aldair falava da falha da marcação coletiva na final da Copa de 98 (França 3 a 0 Brasil), na qual a Seleção Brasileira sofreu dois gols de cabeça do craque Zidane, em cobranças de escanteio, o cachorro Zidane passou a me lamber.

Acabei a entrevista, desci à área externa e fui tomar sozinho, já na madrugada do Sábado de Aleluia, a primeira cerveja daquela semana santa. Cercado por muitos ídolos dos campos citados por outro, todos revisitados no encanto de quem passeia entre os heróis homéricos da sua juventude, o primeiro casco vazio de cerveja ganhou companhia na celebração do trabalho.

Até a “aurora de dedos róseos” anunciar o sol.

 

 

Aldair dos Santos Nascimento e Aluysio Abreu Barbosa, em 19/03/16 (foto de Tércio Teixeira - Folha da Manhã)
Aldair dos Santos Nascimento e Aluysio Abreu Barbosa, em 19/03/16 (foto de Tércio Teixeira – Folha da Manhã)

 

 

Publicado hoje (03/04) na Folha da Manhã

 

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Este post tem um comentário

  1. Savio

    O texto é uma delícia, mas, fiquei vidrado mesmo foi na fotografia, impressionante!

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