Artigo do domingo — A espetacular ocupação do Teatro de Bolso de Campos

(Foto do blog “Ocinei escreve”)
(Foto do blog “Ocinei escreve”)

 

Por Ocinei Trindade (*)

 

Brasília pegando fogo com a votação no Senado Federal pela saída de Dilma Rousseff da Presidência da República, o cacete verbal baixando sobre ela, Lula e o PT na tribuna, e em Campos, um grupo de artistas tenta escrever uma página na história política do município também. Desde o dia 9 de maio (aqui), o Teatro de Bolso Procópio Ferreira, fechado há quase três anos por conta de um ar-condicionado sem reparos, foi ocupado por atores, estudantes, ativistas e artistas em geral. O governo e seus gestores que andam com a popularidade em baixa são confrontados e desafiados. A arte do diálogo pode mesmo revolucionar e transformar atitudes ruins ou equivocadas de um governo?

Entro pela porta lateral do Teatro, converso com alguns ocupantes para saber do movimento. De repente, sai de lá Adeilson Trindade, legendário ator que virou funcionário do TB. Se despede com aquela agitação de sempre para uma reunião no Trianon.  Quando entro, um grupo de artistas muito jovens, desconhecidos por mim em sua maioria, monitoram as redes sociais com postagens sobre a ocupação, uma espécie de relatório em tempo real do que acontece. Elis Regina toca em algum rádio de fundo. Entre os rostos conhecidos, estão os atores Adriana Medeiros, Rosângela Queiroz, Pedro Fagundes e a produtora cultural e ativista Livia Amorim. O clima é tenso, mas duas jovens se revezam ao violão e na percussão na beira do palco, oferecendo uma certa descontração.

Lembrei da primeira vez que entrei no Teatro de Bolso, em 1990. O prédio caía aos pedaços. O lugar não tinha boa fama à época,  território de subversivos, marginais, intelectuais e jovens artistas sonhadores desde o regime militar. Fui para entrevistar João Vicente Alvarenga, diretor lendário de espetáculos na casa, e que futuramente iria assumir cargos de confiança nos governos Garotinho, para mais tarde romper com este, tornando-se um desafeto e crítico. Penso: “o artista e o político são quase sempre incompreendidos, por que será?”. Dizem que Campos é uma cidade de opressão e perseguição. Liberdade de expressão aqui tem seu preço.  Todavia, políticos e artistas têm tanto em comum (interpretam papeis, assumem outras personalidades, ocupam o lugar do outro ficcionalmente, têm como objetivo atingir e convencer o público), que me surpreende quando não há diálogo entre eles.

Faz tanto calor que eu abri os botões da camisa e deixei o peito à mostra. Alguém achou sexy e eu respondo que fui obrigado a ser.  Alexandre Ferram, ator, me cumprimenta. O artista plástico e estudante universitário Victor Santana me convida para uma oficina de arte na parte de cima do prédio. Agradeço, mas estou bem ali sentado na quarta fileira, na cadeira 12, assistindo ao que acontece e puxando pela memória as tantas vezes que entrei naquele teatro. A segunda vez foi em 1991 ou 1992 quando o lugar foi reaberto ao público após uma reforma. Garotinho ou Anthony Matheus era o prefeito. Foi uma era brilhante, entusiasmada e jovial aquele seu primeiro governo. Todos depositavam nele muitas expectativas. Hoje nem tanto, creio. Na reinauguração, o espetáculo de Gianfrancesco Guarnieri, Um grito parado no ar. Diversos grupos teatrais se revezavam nos mesmos papeis a cada cena.  Foi lindo.

Pessoas curiosas com a ocupação entram no Teatro vigiado por alguns guardas municipais e se surpreendem. Acham que o prédio está mal-conservado, sujo e extremamente quente, apesar de alguns ventiladores improvisados e portas e janelas abertas.  É bonito ver os artistas, sobretudo os adolescentes e jovens, fazendo algo que acreditam para mudar uma realidade para melhor. Apesar de tantas crises morais e éticas na política brasileira, eu achava que em um município tão rico como Campos dos Goytacazes merecia estar com sua auto-estima mais elevada com o patrimônio que possui, além de poder contar com pessoas dispostas a colaborar e a realizar projetos nas áreas educacional e cultural. Mas todos se queixam. Se sentem desprestigiados e banidos. Um teatro fechado há três anos tirou o espaço de vários artistas locais, preteridos pelos atores globais que vez ou outra se apresentam no ainda nobre Trianon.

Quem acabou de chegar foi o pintor e artista plástico João de Oliveira, acompanhado da esposa. Lívia Amorim explica sobre a ocupação e as atividades exercidas pelo grupo. Alguns estão se revezando na faxina e retirada de sacos de lixo. Fico pensando quantos talentos Campos possui na literatura, dramaturgia, música, dança, poesia, artes de rua e circo, mas muitos estão escondidos ou desagregados. Fechar o teatro é uma sabotagem, uma afronta, convenhamos. E o dinheiro público previsto para a manutenção desse patrimônio?  Em 1999, o Teatro de Bolso passou por outra reforma. A grande dama Tônia Carrero fez a reinauguração com casa vazia numa noite chuvosa e fria. Outros espetáculos com nomes de expressão nacional foram realizados com a participação do cantor Danilo Caymmi, dos atores Cristina Pereira, Leonardo Vieira, entre outros. Há uns dez anos, entrevistei o genial, icônico e emblemático diretor Amir Haddad que realizou uma oficina para atores no TB. Áureos tempos aqueles. Dizem que a cultura morreu em Campos, mesmo com tanto dinheiro no orçamento bilionário proveniente dos royalties do petróleo (que agora vale cada vez menos). O diretor teatral Fernando Rossi e a pianista e educadora Beth Rocha entram no espaço e cumprimentam os presentes que se espalham na coxia e no palco.

Agora quem chegou foi o vereador Mauro Silva (aqui), além de um representante fardado da Guarda Municipal. Eles escutam dos ocupantes reclamações sobre o tratamento hostil que teriam recebido por parte de alguns guardas que cumpriam a ordem de retirar todos os ativistas do teatro no primeiro dia de ocupação. O chefe da Guarda reage com humor e diplomacia e faz um aceno de desculpas. Mauro Silva traz a mensagem de Garotinho que quer conversar com uma comissão em seu gabinete. Há um pequeno atrito na conversa com integrantes que rejeitam conversa em gabinete fechado. Atrás deles, os atores Thiago Eugênio e Pedro Fagundes passam um texto de uma cena teatral que vão exibir mais tarde. Um deles exclama na interpretação: “canalhas, canalhas, todos são uns canalhas…talvez eles estejam de saco cheio…”. É o teatro. Tudo isto acontece no palco e eu ali assistindo tudo em silêncio. Parece ficção, mas é real. É real, mas parece ficção. Há um intervalo e Mauro Silva me cumprimenta. Peço desculpas por estar de camisa aberta devido ao calor. O gentil vereador não se ofende e comenta: “esse ar-condicionado vai ser consertado, vamos resolver isso…”

Em conversa com Mauro Silva, os ocupantes dizem ter uma pauta para tratar com a prefeita Rosinha ou com o secretário de governo, Garotinho. Lívia Amorim fala que os artistas têm uma série de insatisfações e reivindicações, a começar pela apropriação e utilização do espaço coletivo do teatro. Mauro Silva diz estar disposto a promover a interlocução. Adriana Medeiros disse que a ocupação não é brincadeira e que todos os representantes políticos são bem-vindos para dialogar com os artistas. Ela cita a visita na noite anterior da vereadora Auxiliadora Freitas. Mas todos se queixam da falta de diálogo com a presidente da Fundação Cultural, Patrícia Cordeiro, desaprovam sua gestão e alguns afirmam que ela não têm competência, mas que mesmo assim é mantida no cargo por Rosinha e Garotinho, ex-atores e ex-integrantes de grupos teatrais da cidade. “Cadê Rosinha? Cadê Patrícia?”, perguntam.

As frases vão sendo proferidas e o tom de voz aumenta por parte dos manifestantes: “Este é um ato político sim, mas sem arranjos partidários”; “As pessoas estão se empoderando”; “O governo criou uma barreira com quem é opositor ao governo”; “A arrogância e a elitização prevalecem nos espaços públicos como o Trianon e o Cepop onde são cobrados ingressos caríssimos”; “Carnaval em Campos não acontece há dois anos”; “O projeto cultural de Campos é vergonhoso”; “As pessoas que assumiram o poder se tornaram duras, insensíveis, por quê?”; “Não queremos conversar com os gestores fechados em gabinetes, mas aqui no teatro publicamente”; “Queremos o teatro funcionando a todo vapor”; “Patricia é uma covarde, Rosinha é covarde, Garotinho é covarde”. Os ânimos se exaltam e um impasse se instala. Como resolver?

Em assembleia, os artistas ocupantes reiteram a decisão de não saírem do teatro para conversar com Garotinho em seu gabinete. Telefonemas, discussão interna, nervosismo, algum choro descontrolado acontece devido à pressão das autoridades, mas a palavra é mantida: “Que venha Garotinho, mas que seja de preferência o artista e não o político Garotinho”. Daí, eu penso: mas não são coisas sinônimas?

Tenho fome. Lembro de um chocolate dentro da bolsa. Na embalagem do bombom está escrito; “Surreal”.

Sarau e performances foram programados. Fui embora para casa. Quando chego, tarde da noite, pelas redes sociais fico sabendo que Garotinho apareceu (aquiaqui e aqui) para negociar com os artistas e ouvir suas considerações e reivindicações. Parece ficção, mas é real. Ou melhor, surreal. A vida e arte se imitam e tentam não se limitar. Meu senso crítico está ocupado.

 

(*) Jornalista e poeta

 

Artigo publicado aqui, no blog “Ocinei escreve”, republicado aqui, neste “Opiniões”, e hoje (15) na edição impressa da Folha da Manhã

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Joel Leal Ferreira

    Viva…viva…

  2. SÉRGIO PROVISANO

    Um relato preciso, conciso e imparcial dos fatos… mas com a dose certa de paixão que só os Poetas conseguem imprimir em seus textos. Ocinei Trindade é um Poeta e eu inveja, de forma saudável, os Poetas, se um dia eu reencarnar, que seja na figura de um Poeta, aí eu alcançarei o ápice que um ser humano pode almejar, mas, enquanto isto não ocorre, me atrevo a escrever comentários neste democrático Opiniões, que traz para todos nós, Aluysio Abreu Barbosa, informações que nos conectam com a realidade, com o cotidiano da cultura e do livre pensar… a ocupação do Teatro de Bolso, a cobertura dos fatos, feita da forma que está sendo feita, abrindo espaço para o contraditório, sem censura, sem partidarismo me encanta e deve encantar a todos que estão imbuídos dessa luta que é democratizar a Cultura, eu amei o artigo, eu me solidarizo com a luta. Parabéns a todos que dela participam. Ocupar, lutar, até a vitória e além dela!

  3. Marcia

    Rica cidade pobre .De reais governantes .

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