A terceira campainha soara. Matheus havia chegado atrasado ao teatro e não conseguia enxergar os rostos que o acompanhariam nas próximas horas de espetáculo. A sinopse da peça chamara a sua atenção: um monólogo no qual um homem falava de suas dores e amores. Sabia que, durante as cenas, viveria momentos de catarse que tornariam mais leve o seu interior. Caminhou vagarosamente entre as cadeiras do espaço. Contou seis pessoas. Sentou-se na segunda fileira, sozinho.
Por cinco minutos, nenhum movimento no palco. Apenas uma cadeira de madeira, pintada de branco, no centro, com uma luz da mesma cor sobre ela. Olhou para trás. Estava aflito. As sombras permaneciam imóveis. Um arrepio percorreu o seu corpo. O vazio do teatro deixava-o ansioso e triste. Virou-se para frente. A cadeira, agora, era ocupada por um homem vestido de preto, com a cabeça baixa e cabelos castanhos caídos no rosto. Matheus se ajeitou e se concentrou. O espetáculo estava prestes a começar.
As respirações dos homens trancados no teatro seguiam o mesmo ritmo. Inspiravam, expiravam, inspiravam e expiravam em conjunto. Os movimentos pareciam premeditados e perfeitamente ensaiados. As luzes se tornaram mais escuras, não sendo possível distinguir as expressões dos rostos ali presentes. Ele se mexia em sua cadeira enquanto observava o ator no palco, que se acomodava melhor. Ambos se olharam por breves minutos. Matheus olhou, também, para os outros. Todos o encaravam. Subitamente, levantou-se. Sua vontade era correr em direção à saída de emergência. A estranheza do espetáculo o apavorou. A propaganda havia sido tão boa, e, de repente, as cenas pareciam grotescas. Passos alternados seguiam os seus. Virou-se para trás. As sombras faziam o mesmo percurso. Somente o ator observava o grupo que andava em busca de uma saída inexistente.
Vencido pela tensão, Matheus se sentou novamente. Todos se acomodaram na mesma fileira. Ele ofegava e transpirava. Não se lembrava de ter vivido momentos tão intensos de angústia. A iluminação do palco clareou o ator, que o olhava atentamente. O rapaz gritou ao enxergar a feição do artista. Era ele. Simultaneamente, as luzes da plateia se acenderam. Olhou ao redor. Os demais não possuíam rostos. Os olhos castanhos percorriam os cantos do teatro. Ansiava por explicações, mas sua voz parecia ter se perdido em um caminho sem volta.
A cadeira branca foi arrastada. O ator escorregou pela madeira e se sentou no chão. A luz estava concentrada nele, que alisava o tablado em um gesto incompreensível. Contrarregras surgiram e modificara m o cenário. Um sofá bege, cujo estofado se assemelhava a veludo, ocupava o lado direito do palco. No centro, um divã azul escuro. Matheus reconheceu o lugar. Levantou-se. Suas pernas tremiam. Temia o que iria encarar. Paradoxalmente, não conseguia desviar o olhar. O homem em cena deitou-se e observou o teto.
Antônia, sua psicanalista, conservava o mesmo aspecto sombrio. Os óculos, sempre tortos, postos sobre a ponta do nariz. O bloco branco e a caneta preta posicionadas para anotar os primeiros devaneios que seriam ditos por Matheus. Ela aguardava as palavras, que ainda se ordenavam dentro do ator. Os pés do homem se chocavam levemente, característica marcante do início das consultas. Inspirou profundamente.
— Conseguiu pensar sobre o que falamos na última consulta? — o ator continuava a encarar o teto enquanto Matheus se preparava para responder. Foi interrompido por um sussurro. “Cabe a ti o silêncio, meu caro.” Não havia ninguém a seu lado. O coração tamborilava com violência.
— Pensei, Antônia. Não concluí nada. Não há definições. Definitivamente, sou a perda de tempo que tanto lastimei em minha vida.
Como o ator poderia falar aquilo tão abertamente? Matheus se sentiu desnudado diante dos olhos da plateia e da psicanalista. Eram seus pensamentos mais profundos. Nunca teria coragem de expô-los em voz alta.
— Você é o que enxerga. Você é o que quer, Matheus. Tantas coisas para fazer, e você, homem, permanece apático e insignificante — ralhou Antônia. “Como ela tem coragem de me falar isso?”, questionou-se o homem, que continuava de pé em frente ao palco, apavorado com a grosseria sincera com que era tratado.
— De que adianta ir à luta? Abandonado por uma mulher adúltera a quem continuo amando. Ela, agora, está deitada na cama de outro. Há três anos, amargo essa derrota. O fracasso de não saber lidar com as novidades que a vida me apresenta. Desaprendi a me relacionar. Perdi a capacidade de recomeçar, refazer e recriar. Mesmo com o dia claro, não passo de um notívago. Sobre mim, a sombra de uma nuvem escura prestes a descarregar — a dor de Matheus acabara de ser, pela primeira vez, verbalizada. Desta vez, não entre quatro paredes. Os conflitos foram revelados a outros.
Teve o ímpeto de avançar sobre o ator, que falava sobre suas falhas. “Nem sequer posso deixar herdeiros. Nasci oco. Sou oco. E morrerei oco”, dizia o cruel artista a Antônia, que anotava os relatos. Os movimentos em direção ao palco foram esquecidos quando Matheus olhou ao redor. As sombras estavam coladas ao seu corpo.
— Quem são vocês? O que é isso que acontece à minha revelia? — a voz embargada preencheu o espaço. Desvencilhou-se do invisível e alcançou o homem do divã. Suas mãos pousaram sobre o pescoço do ator, apertando-o. Ansiava pela morte do outro Matheus. À medida que apertava, perdia o ar. Os rostos ficaram vermelhos. As sombras e a psicanalista sumiram. Ele era obrigado a se encarar. Folgou os dedos e se sentou no chão. Homem e ator. Realidade e personagem. Morte e vida. Os dois se olharam por incontáveis minutos.
— Eu sou o que você não tem coragem de assumir. Eu sou a coragem presa a um corpo inerte e fracassado. Uma construção de sua mente. Confronte-se. Procure e encontre, sozinho, o que está perdido — as luzes rarearam. Apenas o divã e Matheus continuavam sob o holofote.
Diante do homem, um espelho havia sido colocado. Ele se encarou. Envelhecido, deitou-se no divã à espera de Antônia para mais um dia de consulta.
Somos atores, estamos sempre em cena… Ou solitários em eternos monólogos conosco mesmo, ou falando com espelhos, que são os outros e assim nos enxergamos, nos tornamos indivíduos. Analisamos os outros, nos auto-analisamos, fazemos juízos encenamos papéis o tempo todo, ora atores canastrões, ora grandes artistas, dignos de prêmios de críticas especializadas… Enfim. vivemos as tragédias e comédias do nosso cotidiano, do nosso viver. Aí,às 16 horas e 04 minutos de um dia 9 perdido no tempo de um junho do ano da graça de 2016, o Opiniões, Aluysio Abreu Barbosa, me traz, nos traz, esse primoroso e sensível texto da Paula Vigneron, que coloca, Em cena, nossos sentimentos que insistem ás vezes, em permanecer escondidos, mas escondidos de quem, da gente? Como se fosse possível se esconder algo… Nada sai de cena, nada se esconde, nem numa tarde fria, nem quente, nada se esconde e eu adorei ser marcado e poder ler esse primor e quero mais, sempre.
Caramba! Depois do primoroso comentário do Sérgio Provisano, parece-me que mais nada pode ser dito. Perfeito.
E esta menina que tem o dom de se entranhar nos labirintos das emoções humanas. Já não leio o que Paula Vigneron escreve, assisto as peças e filmes que ela induz, viajo além da consciência!