Fabio Bottrel — E agora, quem poderá nos salvar desse buraco?

Sugestão para escutar enquanto lê: Oscar Lorenzo Fernández – Reisado do Pastoreio

 

 

 

 

(Tela do pintor Frade)
(Tela do pintor Frade)

 

 

O sol brilhava nas testas umedecidas de suor misturado com terra expelida pelos dedos que esfregavam as gotas descendo feito cortantes folhas. O verde da capineira refletia a vida seca, balançando com o vento cada grão do relento que Gerônimo sentia dentro de si enquanto observava tão pouco precisava aquele pé de braquiária. Observava a vida se colorir em preto e branco dentro de si, algo dizia que não deveria estar ali, no buraco que alguém cavou por ele, sem que ele percebesse. Enquanto se apoiava com as duas mãos sobre o topo da enxada olhava Sô Zé trabalhar feito um cão, que homem durão, as rugas na sua pele predizem uma idade que nunca chegara de verdade. O chapéu de palha umedecida de suor de Sô Zé balançava a cada enxadada forte no solo duro arrancando com tudo, raiz, mato e pé, coisa de Sô Zé, fazia da vida sarapaté.

— Ô Gerômo, que que sô tá parado aí olhando pro tempo?

Enquanto Gerônimo sentia uma gota de suor derramar pelas pálpebras e lhe arder os olhos com o sal amargo da pele sofrida continuava a olhar o horizonte de pasto grande e a enxada incansável de Sô Zé cavando buracos sobre o próprio pé.

— Lembrei de papai e tive saudade, Sô Zé.

— Mas, assim, do nada, homi? Comigo a idade já levô tudo que tinha abrigo aqui dentro.

— Pois é… cada vez que esse suor arde meus olhos eu lembro de papai, sabe Sô Zé, papai queria que eu fosse dotô… me dava até os mesmos livros que via os filhos do sinhô que pagava as enxadadas dele. Quando eu ia ver meu véio capinando no meio do pasto ele falava brabo a beçapra eu correr pra dentro do nosso barraco ler os livros que os filhos do sinhôtavam lendo, me fazia ver as gotas de suor na sua testa já toda marcada e dizia que transformaria cada uma nas tintas do meu diploma de dotô, nas palavras que ele nem mesmo sabia ler.

— Mas cumé que a gente viradotô nesse mundo, tem jeito não… tem é que dá gaças a deus de tê terra pá capiná, e continua logo aí senão o sinhô vem e recrama com nóis que o tratô faz mió.

— Então Sô Zé, esses dias eu tenho pensado que acho que num é pra nós dá graças a deus de capiná não…Ocê nunca parou pra pensá não, por que que a gente se estrupia todo igual nossos pais e nossos filhos continuam se estrupiando igual a gente enquanto os filhos do nosso patrão tão lá na frente?

— Mas que pensamentos esquisitos são esses homi?

— Ah, me dei pra pensar nessas coisas do mundo enquanto escutava na televisão lá do meu barraco uma moça perguntá quem pode nos salvá desse buraco.

— Que buraco?

— O da cidade.

— Mai sô, a cidade tá cheia de buracos, é só eu andar nela que quase caio neles.

—Mas Sô Zé acho que buraco que ela quis dizer é de tê arruinado nossa cidade, cê acredita nisso Sô Zé?

—Ô Gerômo, depois que eu descobri que a Disney fica perto da 28 de Malço eu cridito em qualquer coisa! Até que o Papai Noel mora na Lapa.

— Eu num entendo muito disso, não… mas do buraco eu fiquei curioso e fui perguntápr’aquele rapaz inteligente do sítio ali do vizinho e ele botô umas minhoca na minha cabeça…

— Aquele mininocabiçudo que fica chamando nosso patrão de mau-caráter?

—É…ele começou falando que o buraco que a gente tá levou 20 bilhões de reais…

— Mai eu saio agora pá caçá esse buraco!

—Prest’enção no que eu tô explicando, Sô Zé.

—To prestando, mainum sei quanto é 20 bilhão de real.

— É tanto dinheiro que daria para cobrir toda essa terra até onde a nossa vista não tem fim.

— Tanto assim? – Perguntou Sô Zé coçando a cabeça fazendo força para tentar imaginar tanto dinheiro.

Gerônimo passa a mão calejada na calça esfarrapada e tira de dentro do bolso direito uma nota de 10 reais amassada e coloca no chão.

—Tá vendo essa nota de 10 reais?

—Tô…

—10 reais dez vezes dá 100 reais – Gerônimo mediu a nota com os pés e deu algumas passadas para demonstrar até onde iria 100 reais.

100 reais dez vezes dá mil reais – Gerônimo deu passadas maiores.

1.000 reais dez vezes dá 10 mil reais – Enquanto Sô Zé o acompanhava ele demonstrava com o dedo aonde ia o dinheiro até 20 bilhões de reais e em pouco tempo perceberam que não daria para imaginar aonde iria aquele montante.

— Foi assim que o rapaz me explicou o que a nossa cidade recebeu, que é dinheiro d’a gente… Sô Zé, ocê acha que era para nós tá aqui nesse sol encardido capinando feito um curisco com esse dinheiro todo?

Sô Zé tirou o chapéu molhado de trabalho duro e olhou para o horizonte afora a vista de onde o dinheiro iria.

— É muto dinheiro né Gerômo?

— Pois é…

— Mai tem passagem a 1 real…

— Pois é, Sô Zé, mas se esse dinheiro fosse investido em educação nós podia ter oportunidade de intévirar dotô igual papai queria e numprecisá de passagem de 1 real.

— É…

— E ocê acha que eles querem que a gente pare de dependê dessa passagem de 1 real?

Sô Zé colocou a mão na testa como um boné e olhou o horizonte vista afora que não daria para enxergar aonde o dinheiro iria.

— Acho que não né Gerômo?

— Pois é Sô Zé, por isso que eu acho que tem um troço errado d’a gente tá aqui se estrupiando…

— Imagine só se nóis virasse dotô, quem ia capinápo patrão? – Perguntou Sô Zé com o chapéu no peito e um sorriso no canto da boca de imaginar a cena dizendo ao senhor que não precisa mais dessa pena, pois agora tinha um lugar para ele onde senta essa gente em poltrona de penas.

—Tá vendo, Sô Zé, é isso que eu comecei a pensá, quem diz que esse mundão é bão e feito de gente trabaiadora é que num tá na nossa pele…

— MaiGerômo dinheiro pá mai de metro assim num some, deve de ter sido invistido em algum lugá…

— Onde?

Sô Zé coçou a cabeça com força.

— Na saúde?

— Minha muié precisou ir para o hospital e foi atendida com as costas no ferro fri pra daná, que num tinha nem colchonete… colchonete, Sô Zé, até nós tem em casa! Mesmo minha muiétando muito mal num deram uma amostra grátis do remédio, tivemos que juntar nosso dinheirinho dias a fio com ela ruim, pra comprá o tal do remédio…

Enquanto os dois conversavam passava um carro todo adesivado de foto sorridente levantando poeira correndo feito um avião, eis que o cão sem dono avista os dois perto da cerca conversando, para o carro e se aproxima.

— Ô meus amigos! – Disse o homem com um adesivo numerado na camisa e uma foto dele próprio sorrindo igual tiririca enquanto lá do outro lado da cerca os dois se olhavam e não entendiam nada.

—Cê conhece esse homiGerômo?

— Conheço não, Sô Zé…

— Mai que esse homitá com essa alegria rabial toda, saltitando a cerca agarrando até os fiofó no arame farpado pá falá com nóis, sô?

— Ah, Sô Zé, tô te falando que essa época faz todo mundo ficar assim. Ah lá, parece até que o homisentô num prego.

Com a respiração ofegante o homem se desvencilhava das braquiárias até chegar aos dois que observavam a sua trajetória hercúlea em zigue-zague. Quando se aproximou dos dois, apoiou no ombro de Gerônimo enquanto seu corpo curvava com as mãos no joelho tentando respirar a ponto de ser possível falar, percebeu ali que estava muito sedentário.

—Cêtá bem, homi? – Perguntou Sô Zé.

— Meus amigos! Vim aqui me apresentar a vocês para dizer que estou aqui pra melhorar a vida de vocês! Lutando junto! Para uma cidade melhor!

— Que isso, homi… lutando junto como se o sinhô num consegue nem dar três passos no pasto? – Perguntou Gerônimo.

— Mas eu estou lá! Representando vocês!

— Lá naquele palácio grego?

— Lá… em frente a pracinha!

— No castelo grego?

—É…!

— Enquanto a gente tá aqui capinando pasto… – Disse Gerônimo para Sô Zé – Eutô dizendo Sô Zé, esse troço tá muito estranho.

— Vim aqui para cuidar de vocês! De tudo que precisarem! – Enquanto falava tirava do bolso panfletos com a sua cara caricata entregando aos dois e logo começou a sussurrar – Se estiverem com dificuldade em pagar alguma conta de casa me avisem, o importante é que toda a família de vocês esteja feliz e saudável. Por falar em saúde… – O homem corre até o carro e abre o porta-malas – Trouxe muitos remédios, amostra-grátis! Para o que precisarem!

— Ah lá, Sô Zé… o homem tá com o carro cheio de remédio pra distribuir enquanto minha muié não conseguiu nenhum… que que esse remédio tá fazendo com esse homi e num tá no hospital? Tão tirando denóis e tentando parecê que é favô Sô Zé, cênumtá vendo não?

— Mai que fí das unhas discarado, hein?! Some daqui estrupíço! – Continuou gritando Sô Zé alto como se espantasse um urubu rodeando a carcaça. Ao perceber a reação negativa o homem prontamente entrou no carro e foi distribuir as amostra-grátis do hospital em troca de votos por outras bandas.

O dia já ia entardecendo e os dois em vez de trabalharem ficaram pensando e Sô Zé preocupado com a reclamação do patrão ao perceber que não produziram muito, logo as enxadas voltaram a arrancar as raízes mais grossas do chão, mas não demorou muito tempo para ele se incomodar de novo e parar de capinar.

—Gerômo, depois dessa conversa num dá pá aceitáficá capinando aqui nesse sol.

— Pois é, Sô Zé, eu to sentindo a mesma coisa, to batendo essa enxada nesse chão duro aqui cuma raiva danada.

— Mai Gerômo, né possívetá tudo assim, é muto dinheiro, e esse negóço de curtura, tem nada pá nóisfazê não?

— Sô Zé, eu fiquei sabendo que o teatro tá fechado há três ano por cadi um ar condicionado. E no carnaval só um rapaz que vei de fora recebeu duas vezes mais que uma escola inteira nossa de 500 pessoas.

— Mai cadiquê isso?!

— Ô Sô Zé esse buraco tá mais fundo que a gente imaginava…

— E quem que vai salvánóis dele?

— Acho que nós mesmo.

Gerônimo e Sô Zé em vez de parar de falar na crise e trabalhar resolveram pensar e fazer a mudança, pois ao pensar descobriram que os únicos que podem salvá-los desse buraco são eles mesmo.

 

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