Carol Poesia — O que é um livro?

Carol 18-10-16 (1)

 

 

 

No dia 15 de outubro, dia do professor, Amadeus recebeu por e-mail o requerimento de uma aluna:

 

“Solicito, mais uma vez, a troca do livro que tenho que ler para o programa de leitura, por motivos religiosos. Alexandra.”

 

O programa de leitura, ao qual a aluna se refere, era um artifício de incentivo à leitura, criado pela instituição em que trabalhava. Todo semestre alguns títulos eram pré-selecionados pelos professores e os alunos votavam naquele em que gostariam de ler.

Não era a primeira vez que Amadeus recebia aquele tipo de requerimento. Certa vez, foi eleito o livro Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, livro premiadíssimo no Brasil e sugerido pelo MEC para alunos do Ensino Básico. Pois bem. O livro foi adotado para alunos do Ensino Médio, e, mesmo assim, Amadeus foi ameaçado de processo pela mãe de uma aluna que não “se conformava” com as “passagens de sexo”. Ora, o protagonista do livro é um jovem de vinte e um anos que fica paraplégico, é claro que, em meio a suas reflexões e memórias ele iria ponderar a questão sexual.

Esses embates lembram a Amadeus que o óbvio nunca pode ser dispensado.

Reunião de pais, esclarecimentos, debates… Se os reclamantes se propusessem a ler de verdade, veriam que a pertinência do romance vai além dessas passagens, trata da resiliência e de outros aprendizados importantes. Além disso, se se propusessem a um encontro estético honesto com a obra, veriam que o lirismo com o qual o autor consegue tecer uma história tão trágica, que vem a ser, inclusive, a sua história, faz valer a pena cada linha do livro, inclusive os parágrafos que narram seus namoros.

Mas não. A sociedade, de uma forma geral, é tão “afetada” com sexo, e tão “protegida” contra o prazer que até mesmo uma única palavra no título é capaz de gerar uma recusa preconceituosa e bloquear a leitura. Inclusive no Ensino Superior! Foi assim com O julgamento de LÚCIFER (Adriano Moura), livro que trata das barbáries da humanidade. Foi assim com Memória de minhas PUTAS tristes (Gabriel García Márquez), autor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Fadigado, Amadeus deixa de lado o cansaço, e, mais uma vez, acredita na educação:

 

“Prezada Alexandra,

Boa tarde!

Venho, por meio deste e-mail, fornecer-lhe alguns esclarecimentos a respeito do seu  requerimento.

O livro escolhido pelos alunos, para esse semestre, Memórias de minhas putas tristes, é uma obra de ficção. O que isso significa? Significa que, como qualquer obra de ficção, ele não tem a obrigação de se submeter ao que o senso comum nomeia como “verdade absoluta”, nem tampouco a verdades individuais. Trata-se de uma obra de arte, tal como uma novela, um filme, uma música, uma peça de teatro, ou seja, não carrega em si a obrigatoriedade de uma intenção moralizante, embora possa trazer muitos aprendizados à humanidade.

Temos que ter a clareza, Alexandra, da intenção de uma obra de arte. Qual seja: a arte existe para ‘desautomatizar’ o indivíduo, para promover um encontro estético, para suscitar questões e discussões de diversas ordens. Não existe arte sem problematização, o que não quer dizer que o leitor tenha que concordar com o ponto de vista do narrador ou do eu-lírico, que pode, por sua vez, nem vir a ser o ponto de vista do autor em si.

O que isso quer dizer? Quer dizer que no Brasil, país de NÃO leitores, é comum a equivocada equivalência feita entre ‘falar sobre’ e ‘concordar com algo’. Falar sobre um assunto, problematizar um tema NÃO significa concordar ou discordar de algum posicionamento! Ou, num vocabulário mais místico, NÃO significa compactuar com alguma ideologia. Se você for leitora do livro, entenderá isso na prática.

Como eu já li a obra várias vezes, entendo seu valor literário e sua pertinência temática, que serão bem explorados durantes os debates. Se você se dispuser a lê-lo, entenderá a sua importância e beleza. Não por acaso, Gabriel García Márquez ganhou o maior prêmio de literatura mundial — o prêmio Nobel, reservado aos autores mais importantes do mundo.

Não posso garantir que você vá gostar do livro, mas posso garantir, como leitor, escritor, professor e mestre em Teoria da Literatura, que essa obra fará diferença na sua bagagem literária e cultural. E a minha responsabilidade, como seu professor, é garantir a leitura de livros que acrescentem ao seu intelecto, afinal o intelecto é substância a ser trabalhada pelo meio acadêmico. Outras substâncias, como a espiritualidade, não obstante sua importância social e humana, fica a encargo das instituições religiosas, não sendo, portanto, uma premissa para o nosso trabalho.

Vale a pena acrescentar, a título de esclarecimento, que as universidades NÃO se opõem às instituições religiosas, trata-se apenas de campos do saber distintos. Campos esses, de que nós podemos usufruir livremente, uma vez que temos sabedoria para distinguí-los.

Nesse sentido, deferir sua solicitação seria permitir que um aluno ignorasse os benefícios intelectuais de uma obra tão criteriosamente seleciona, tão analisada pelos estudos literários e mundialmente reconhecida pelo seu valor, e perpetuasse assim um olhar equivocado, fruto de um preconceito que, ao que tudo indica, nem é religioso em si, mas decorre, possivelmente, da falta de esclarecimentos básicos no que diz respeito ao estudo de linguagens, muito comum à realidade educacional brasileira.

Agradeço, sinceramente, a possibilidade dessa discussão, que muito me interessa. Será um prazer imenso tê-la nos debates sobre o livro, para que você possa fazer suas colocações e, inclusive, contestar-me.

Não é uma preocupação para mim que você ou qualquer outro aluno, colega, leitor, concorde com o MEU ponto de vista. A minha obrigação, como professor, é que você ou qualquer outro aluno tenha conteúdo e capacidade para tecer uma boa argumentação a favor do SEU ponto de vista. E capacidade para argumentar a gente só consegue lendo, caso contrário, nossos debates ficariam reduzidos a “achismos”, o que não condiz com a qualidade pretendida pela instituição e por mim.

Atenciosamente,

Professor Amadeus”

 

 

Alexandra rapidamente respondeu ao e-mail de Amadeus:

 

“Ok. Mas eu gostaria de saber se minha solicitação para troca de livro será deferida, porque senão eu não vou fazer a prova.

Alexandra”

 

 

Amadeus, professor:

 

“Prezada Alexandra,

Entendo o exercício de sua liberdade.

Infelizmente não será possível a troca; além de tudo que o que já lhe expliquei, ela abriria precedentes e fragilizaria o processo democrático através do qual o título foi coletivamente eleito.

Atenciosamente e sempre à disposição,

Professor Amadeus”

 

 

Após a resposta de Amadeus, Alexandra procurou uma instância superior. E Amadeus se perguntou, como tantas vezes já havia feito, como tantos professores devem fazer todos os dias, se não seria mais simples deferir a bendita solicitação. Para ele seria, sim, mais simples, mais cômodo, menos cansativo, menos polêmico, mas não seria honesto. Alexandra podia ter desistido de aprender, por um equívoco conceitual bobo que ela associou a questões religiosas. Mas Amadeus não se sentia no direito de deixar de ensinar. E sabia que toda vez que ensinava, aprendia.

Respirou fundo, tomou um café quente e ligou a TV:

 

Notícia 1: “classe artística reage ao fechamento do ministério da cultura”.

Notícia 2: “dentre as propostas do movimento Escola sem Partido está a punição para professores que derem  opinião em sala de aula”.

Notícia 3: “de acordo com a nova proposta, as disciplinas de artes, sociologia, filosofia e educação física deixam de ser obrigatórias nas escolas”.

 

Respirou fundo, tomou mais um café, fez as contas de quantos anos faltam para a sua aposentadoria e foi dar aula.

 

 

[Dedico esse texto aos meus colegas professores, sobretudo aos meus pais — professores incansáveis —, e aos amigos que com sua postura contribuem decisivamente para a minha formação — Analice Martins, Adriano Moura, Douglas Lemos, Wendel Sampaio, Alcimere Maria e Lúcia Bastos.]

 

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Este post tem 3 comentários

  1. cristina lucia silva dos santos moraes

    Professor amadeus
    Queria ser sua aluna e colega da Alexandra. Já fui uma Alexandra, mas hoje me pareço mais com o prof. Amadeu. Isso porque alguém investiu em mim.Não desista professor. Amanhã ela te agradecerá.
    Um abraço
    Uma professora já aposentada e desconhecida.

  2. Douglas Lemos

    Que os Espíritos Superiores conservem a saúde, a sobriedade, o comprometimento e a vocação educadora de Amadeus!
    E que a Igreja de Alexandra conforte sua pequenez humana e espiritual!
    Ah, e que a Carol da Poesia continue sempre nos brindando com as Poesias de Carol: sejam elas na música, no teatro, nos barezinhos ou, simplesmente, por meio da poética do olhar.

  3. Kátia Moraes

    Formidável,a ignorância mata mais do que a pior das doenças já registradas pela homem.

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