Guilherme Carvalhal — Herança de uma mulher louca

 

Carvalhal 29-12-16

 

 

Ela perguntava um mais um, dois, respondia aquela voz anasalada e inocente. Dois mais dois, quatro! Três mais três? Sete! E então a harmonia reinante se perdeu.

Ao longo da vida se acostumaria com seus achaques. Inicialmente brandos: ficava nervosa, andava de um lado ao outro, acendia um cigarro no outro. À medida em que crescia a coisa tomava proporções paulatinamente mais negativas.

Na pré-adolescência os chiliques se tornaram mais coléricos. Os ataques limitados a ofensas (“idiota”, “o que fiz para te merecer”, “quando você crescer será um doente que jamais vai sair do hospital”) passaram para pequenas agressões. Nada de danoso, pois atirava uma toalha na sua cara ou a água de um copo. Danos provocava somente à casa. Arremessava garrafas e pratos nas paredes, batia portas com força, arrastava móveis arranhando o piso e lascando a madeira. E a si mesma, quando puxava os próprios cabelos até arrancar tufos ou quando cortava os próprios pulsos.

Desde criança, diante da condição materna, aprendeu a lidar com um lar onde inexistia segurança. E uma criança criada em tal ambiente desenvolveu duas características. Uma delas foi a iniciativa. Ausente ela em suas divagações internas, logo precisou cozinhar, lavar as próprias roupas e assumir funções de adulto. A outra foi a insegurança. Sem a proteção que seu aconchego deveria proporcionar, a criança não aprimorou a capacidade de confiar em si e de acreditar que tudo pode dar certo.

E guiado por esses dois instintos embrenhou-se pela adolescência. A mãe cada vez mais distante, cada vez mais agressiva, cada vez mais incapaz de distinguir verdadeiro ou falso. As perspectivas futuras se nublavam. Ouviria uma colega de sala sonhar com a faculdade, um outro comentando seu desejo de se tornar motorista de caminhão e percorrer o Brasil, uma pensando em concurso público, e aquele mais estranho querendo se tornar traficante de drogas. E assim a incerteza se concretizava, o furor juvenil matizado pela relação difusa com a mãe, de protegê-la e se ver agredido. Chegava na aula com uma marca no pulso de suas unhas, com os olhos inchados após chorar e inventava justificativas para ninguém notar. Como buscar alguma estabilidade assim?

A fase adulta acompanhou uma mudança mais brusca na atitude da mãe. Agora diante de uma pessoa crescida, não precisava mais maneirar, e assim a violência perdeu os limites. Agarrões, tapas, mordidas, isso tudo se juntou ao repertório ao qual estava disposta. E o leque de xingamentos também se expandiu, não havendo mais limite para o rebaixamento de outra pessoa.

E, em um movimento automático do corpo, afastou-se dela. Não voltava para casa, não lhe dirigia a palavra e aos poucos a relação destrutiva se converteu em uma nódoa branca no passado, em algo longínquo, porém permanente, quase em estado incubatório.

Muitos anos depois, quando mal se lembrava dela um dia ter existido e recebeu o comunicado acerca de sua internação — o câncer a consumindo — percorreu sua memória uma corrente de maus agouros, a abertura de um manancial de dores retidas a duras penas. Levantou-se abruptamente, lançando o copo contra a parede. Agarrou os próprios cabelos e os arrancou, socando em seguida a porta com fúria. Sem forças, caiu ao chão em prantos, constatando a herança indesejada que recebia.

 

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Este post tem 4 comentários

  1. Hercules

    . Nada qua já não se tenha lido em algum conto perdido entre os séculos XVIII e XX . Desfecho bem previsível , de uma estória que não empolga, trás alguma incertezaou novidade. Talvez , o autor , devesse tentar encontrar seu estilo, pois não se vê qual poderia ser neste pequeno texto. Pequenos erros de concordância também. No primeiro parágrafo os tempos verbais estão no passado e subitamente, a ação vai ao presente. Difícil ! Enfim ,,nada como ter um jornal!

    Espero que a moderação não apague. Vou tirar print.

    1. Aluysio

      Caro(a?) Hercule(s?) Poirrot,

      O blog, como qualquer outro hospedado na Folha Online, não aceita comentários anônimos, de gente que não tem coragem para fazê-los além da sombra de um pesudônimo — mesmo mal copiado. Mas, apenas pelo prazer, vou abrir uma exceção de fim de ano ao seu. Isto posto, ninguém é obrigado a gostar do conto do Carvalhal. Mas, como vc não foi nem capaz de “descobrir” o autor nominado do texto, talvez a insanidade que nele é narrada, de maneira contundente, lhe tenha contagiado. Qd vc passar a ler (direito) algo além de Agatha Christie (1890/1976), a gente conversa.

      Abç e feliz 2017!

      Aluysio

  2. Debora

    Como sempre, espetacular!

  3. Gildo Henrique

    Muito bom.

    Apenas me soou mal o “criança criada”.

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