Guilherme Carvalhal — A Cortina

 

Carvalhal 12-01-17

 

 

Depois que papai instalou a cortina, nossa casa nunca mais foi a mesma. Não tinha mais a incidência do sol ao fim da tarde traçando um raio que aumentava de extensão pela sala até morrer ao anoitecer. Não enxergava mais quando Dorotéia chamava em casa convidando mamãe pro dominó. Para quem as regras impediam de sair sozinho, a cortina isolou meu mundo.

Desprovido da paisagem da rua a acalentar minha curiosidade pueril, colei-me à parede e a cada som passei a associar alguma imagem. Quando um pássaro cantava, de cá eu cogitava, um melro ou um canário, pintava-o com minhas cores prediletas, reverenciava seu voo em um estilo peculiar. O pedreiro comentando com papai sobre levantar um muro me levou a imaginar as torres de um castelo medieval e seus crocodilos ou o entorno de cerca de arame farpado e eletrificado de uma base militar.

Cresci nas intermitências do claustro obscuro gerado pela cortina. Como aquela camada de cetim colocava um ponto final em minha visão, restava-me acrescentar reticências continuando a história a meu bel-prazer. Mais do que sensorialmente, finquei as raízes no quintal e cruzei as ruas de bicicleta imaginariamente, de onde o sabor das mangas caídas do pé após a chuva de verão adocicavam minhas papilas gustativas a centenas de metros de distância.

A abertura de um mundo palpável à medida em que os anos passavam deixaram essa lembrança trancafiada em algum lugar do passado. Da adolescência à vida adulta, trocamos as coisas de meninos pelas de homens. Assumimos aquele fervor burocrático do dia a dia, em um turbilhão de compromissos nos quais não diferenciamos mais onde termina nosso legítimo eu e onde começa um simulacro existencial exigido pelo mundo.

Em contrapartida, sempre quando observo da janela do meu carro as cortinas das casas balançando ao vento outonal, avoluma algo jamais de fato silenciado, como um animal na coleira latindo e dando solavancos contra a corrente chumbada no concreto. E o sinal se abre, lembrando-me da eterna progressão do mundo adiante. Por uns breves instantes, meus olhos se fecham e recrio um mundo novo, em um projeto de engenharia exclusivamente meu. Meu universo, adaptado aos meus desejos, com regulamentos próprios, onde minha satisfação pessoal reinava.

Eis que o buzinaço me lembra da obstrução do trânsito. Engato a marcha e sigo para meu próximo compromisso, para o mundo real, inequivocadamente real, inequivocadamente contra mim. Aquele vaticínio ao qual nos rendíamos, inescapável, inevitável. O buzinaço cessa. Os demais carros me ultrapassam. Sinto que cada motorista ao meu entorno acordou unicamente para descerrar as cortinas de minhas pálpebras e me libertar do cárcere de minhas fantasias.

 

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