Num mundo onde tudo deixa de ser a cada instante, como no rio de Heráclito onde jamais seria possível banhar-se duas vezes, as águas correm, o rio já não seria o mesmo e a vida segue o fluxo enquanto nos apegamos a um momento de verdade que deixa de existir num piscar de olhos. Reinventar-se é preciso para se manter vivo, como diz o professor Cláudio de Barros Filho no vídeo acima, mas como reinventar um coração que insiste em amar à mesma maneira?
“A reinvenção de si deve respeitar as próprias características de quem vive e as exigências específicas do cenário em que vive.” Difícil resolver essa equação quando imersos numa sociedade carente de ética e moral, como vimos vir à tona após a greve da polícia militar no estado do Espírito Santo. A falta do exercício da consciência moral, sendo regidos por agentes externos como a polícia, câmeras de segurança ou qualquer artifício que impeça a decisão das ações por sua própria consciência ou agentes internos, deu no que deu quando se retirou as forças externas ao indivíduo e deu-lhe pleno poder. Como lembra Machado de Assis tal como uma premonição: a ocasião não faz o ladrão, ela apenas o revela – a condição de sê-lo é precursora como demonstraram diversos cidadãos que saquearam o comércio capixaba, minha terra natal.
Assim também é no relacionamento, diante da inexistência de forças repressoras como um homem ou mulher que não reprime os desejos de seu cônjuge ou critica uma roupa vulgar, mas tenta entender os anseios de tal atitude, e nutre o outro com os elogios e esperanças outrora escassas para que se sintacada vez mais nobre e pleno, colocando em primeiro plano o sorriso esquecido. Ao imbuir de poder, tal como um líquido que penetra toda a pele, vem à tona o ser como ele é, e às vezes pode ser torpe e degradante de uma maneira que ele nem mesmo se reconheça após a fissura da máscara a tanto impregnada. Como escrevi em tempo pretérito nesse espaço “menina retire a máscara e veja que a tua pele ainda é nova, e se te doer a carne crua chorarei contigo os elogios das suas próprias lágrimas.” A ferida de quem tem bom coração é dar o pleno direito do outro ser o que é ao abrir os braços em abraço se mostrar alguém do qual ele não precisa se defender, e o que pareceria bom se torna a batalha mais árdua, a luta do outro contra si próprio.
No texto Um Grande Homem, Arnaldo Jabor cita a conduta de seu pai ao ver a filha chorando sobre a cama. O pai se aproxima, acaricia o rosto úmido da sua irmã e após conversar por horas diz: “Minha filha, apaixone-se por um grande homem e nunca mais voltará a chorar.” O conselho serve para ambos os sexos.
O homem se constitui com as respostas aos desafios e nesse quesito parece o coração ser separado do corpo, pois por mais que se reinvente o amor, reinvente a dor, reinvente a própria vida, jamais seria possível reinventar o que se tem dentro do coração – colocando o seu significado na mesma categoria da mente. Talvez isso seja o que se chama de essência, para quem não é afeito ao materialismo dialético. Pois apesar de todos os pesares, ele segue inchado de bondade mesmo que sua vazão deságue num aparente abismo.
Na tentativa de tornar o instante dessa leitura pleno, que as pálpebras se fechem nesse piscar de olhos levando a poesia:
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles